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"Educação é única saída para discriminados"

Carlos Albuquerque19 de dezembro de 2013

Filha de agricultores analfabetos do interior do Ceará, Luma de Andrade conta como, após décadas sendo vítima de violência e discriminação, encontrou seu lugar na primeira cidade do Brasil a abolir a escravidão.

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Luma Nogueira de Andrade ao lado da reitora da Unilab, Nilma Lino GomesFoto: Assecom/Unilab

No ano passado, Luma Nogueira de Andrade se tornou a primeira travesti doutora do Brasil, ao defender tese sobre o tema na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.

Aos 36 anos, a filha de agricultores analfabetos do interior do Ceará se tornou também a primeira professora travesti de uma universidade federal ao entrar, na semana passada, para o Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, a 55 quilômetros de Fortaleza.

Redenção ganhou esse nome por ter sido, em 1883, a primeira cidade do Brasil a abolir a escravidão. Hoje, ela abriga a Unilab, uma universidade destinada a brasileiros e a estudantes vindos de países de Língua Portuguesa, especialmente os africanos.

Em entrevista à DW Brasil, Luma falou sobre a luta das travestis no Brasil e sua batalha para superar o preconceito e a discriminação: "A educação é a única saída para muitas das pessoas que são historicamente discriminadas."

DW Brasil: O que você conseguiu pode servir de exemplo para outras pessoas no Brasil?

Luma de Andrade: A trajetória de vida das travestis no Brasil é evidente desde a década de 1970/80, quando elas buscavam a margem da sociedade para sobreviver. Por serem diferentes, elas não eram aceitas na família. Nas escolas, existiam mecanismos legais que impediam a presença das travestis e homossexuais, como também na sociedade em geral, onde elas não tinham acesso ao emprego.

E aí elas criavam linhas de fuga e resistência, e a única alternativa de sobrevivência era a venda do corpo. Principalmente durante a ditadura militar. Ao serem pegas nas ruas, elas eram acusadas de atentado ao pudor, o que era um crime. Então eram presas, colocadas em celas lotadas de homens, eram estupradas, violentadas física e psicologicamente, muitas vezes assassinadas.

Não podemos negar esse contexto histórico e dizer que, se hoje eu cheguei aonde eu cheguei, é porque eu sou fruto dessas guerreiras, dessas batalhadoras, que lá no começo histórico elas estavam resistindo E elas continuaram sua resistência.

Você é agora professora de uma universidade que é praticamente única no Brasil. É também é a universidade federal com a primeira reitora negra no país. Essa diferença levou a uma maior aceitação também a você?

Luma de Andrade Unilab Brasilien EINSCHRÄNKUNG
Campus da Liberdade: o nome reporta à libertação dos escravos na cidade cearenseFoto: Assecom/Unilab

Certamente. Eu teria que buscar uma universidade que estivesse alinhada à minha forma de pensar. Eu sempre batalhei na minha vida, buscando o meu espaço no centro da sociedade e não se conformando com a margem dada como algo gratuito. Através da educação, eu busquei me posicionar no centro da sociedade. E a educação funciona como esse dispositivo de poder. Ao superar todos os preconceitos pelos quais passei, eu tinha que buscar um local onde eu pudesse ter a liberdade de realizar um trabalho pela liberdade. A Unilab é esse espaço.

E a Unilab é uma universidade destinada especialmente a africanos...

Ela funciona numa cidade que foi a primeira cidade do Brasil a libertar as pessoas escravizadas. Trata-se de uma mudança de postura radical: em vez de trazer as pessoas negras vindas da África para escravizá-las no Brasil, a Unilab faz o inverso, ela traz pessoas vindas da África para alcançar sua libertação. É como diz Paulo Freire, a educação é liberdade. E algo mais ainda simbólico: o nome do campus em que eu trabalho é o Campus da liberdade e o meu trabalho é pela liberdade. E isso faz parte do meu contexto histórico: a busca da convivência pacífica e harmônica com as diferenças.

Você já havia lidado com esse tema em seu doutorado?

O tema de meu doutorado é exatamente as travestis na escola, o que elas passam para poder resistir no ambiente escolar e o que faz com que elas sejam evadidas. Na verdade não é uma evasão comum, é uma evasão involuntária, forçada. Elas são forçadas a sair da escola, porque se cria um aparato tecnológico, social, para que elas não sejam bem aceitas.

A travesti não é respeitada pelo seu nome social. Ela não pode frequentar o banheiro feminino. Ela não pode ir ao banheiro masculino, porque é violentada sexualmente. Ela não pode frequentar o banheiro feminino porque a gestão escolar muitas vezes não aceita. Lógico que isso não acontece em todas as escolas, mas nas escolas onde há gestores, professores, educadores que não tenham compreensão sobre a questão da diversidade e continuam utilizando termos fundamentalistas, através da Bíblia, para poder justificar a questão da negação e da exclusão.

Qual a importância de uma travesti como professora da Unilab?

Porque nós temos vários países, principalmente países africanos, que têm leis que criminalizam a questão das homossexualidades. Existem países de onde recebemos estudantes como, por exemplo, Cabo Verde, onde somente há pouco tempo os jovens conseguiram derrubar a lei que previa a pena de morte para a homossexualidade.

Mesmo a lei caindo, essas pessoas têm um histórico cultural de uma negação muito forte. E é preciso ter um trabalho muito intenso, para que essas pessoas possam compreender que assim como elas foram vítimas do preconceito e da discriminação no passado, hoje, elas são as protagonistas desta mesma história. Eles podem retornar a seus países com outra mentalidade e podem influenciar outros companheiros que lá estão, para uma mudança de postura no respeito à diferença.

A homofobia no Brasil até hoje não é crime. Comparando com os negros, como você vê o país no que tange os direitos dos homossexuais?

É um processo histórico. O caminho percorrido pela população negra para conquistar os seus direitos é bem anterior à questão do movimento LGBT. Mas não significa dizer que não existe a possibilidade de mudança radical. Nós estamos num processo recente, que se iniciou, por assim dizer, na década de 1960 com o movimento feminista. Então comparado ao movimento negro, o movimento LGBT é recente. Embora as conquistas ainda sejam poucas, a gente percebe que há melhoras a cada ano.

O que nos barra mais é a questão do movimento fundamentalista dentro do Congresso Nacional. O movimento fundamentalista por parte de alguns deputados e senadores emperra muito o processo da democratização, do laicismo e das garantias dos direitos humanos. Eu diria até que a democracia e o laicismo do Brasil estão ameaçados por esses fundamentalistas.

Universität für internationale Integration Unilab
Unilab foi criada em julho de 2010Foto: Unilab

Você enfrentou discriminação dentro da família?

Sim, quando minha mãe morreu, meu pai me colocou para fora de casa. Mesmo assim eu persisti nos meus estudos. Na escola, quando eu era jovem eu era espancada na hora do intervalo porque os meus colegas não aceitavam que eu brincasse com as meninas e quando eu chegava na sala de aula, a professora apenas dizia: "Bem feito, quem manda você ser assim". Mas eu não sabia o que ela estava querendo dizer, porque eu era apenas uma criança. Com o passar dos anos, eu fui compreendendo. Eu era vítima desse processo, que na verdade era uma punição para poder se adequar à norma.

Ou eu me adequava à norma ou eu era punida. Eu utilizava um artifício que era o meu conhecimento e a minha capacidade de aprender com facilidade, principalmente matemática, para poder ensinar meus colegas quando se chegava próximo às avaliações. Então eles precisavam da minha ajuda. Eu ganhava o respeito e a proteção deles, porque eles não deixavam que os outros me batessem, por conta dessa troca de favores.

De onde você tirou toda essa força para seguir adiante?

Eu sou filha de agricultores analfabetos, eu venho de uma família muito humilde de Morada Nova, uma cidade do interior do Ceará. E nada foi fácil, tudo foi uma luta. Para a educação foi uma luta, mas eu sempre buscava na educação essa saída. Ela serviu para a minha vida como uma linha de fuga para a superação do preconceito, da discriminação e da vida que eu tinha na minha família, que era muito humilde.

Então a única saída é a educação. Como é a única saída para muitas das pessoas que são historicamente discriminadas, como os negros, homossexuais, travestis. A educação é o único elemento, a única linha de fuga, como diria o Foucault, para a libertação.