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Entrevista com Tarana Burke, fundadora do #Metoo

Helena Wöhl Coelho | Meyre Brito | Sabrina Walker
10 de julho de 2018

Fundadora do movimento internacional concedeu entrevista à DW Brasil em meio ao Festival de Criatividade Cannes Lions. A ativista fala sobre o impacto do movimento, mas que ainda há um longo caminho pela frente: "estamos tão socializados a aceitar as formas de violência de gênero, que já não enxergamos mais."

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Em 2017, a hashtag #Metoo viralizou ao ser usada por Alyssa Milano no contexto de denúncias contra o produtor hollywoodiano Harvey Weinstein. Mas o movimento já existia há mais de uma década: em 2006, Tarana Burke usou as palavras #Metoo para dizer o que até então milhões de mulheres calavam.

DW Brasil: O #Metoo viralizou em 2017, mas, na verdade, você começou o movimento há 12 anos. Pode nos contar como foi?

Tarana Burke: Começou em Selma, no Alabama, que é uma cidade histórica nos Estados Unidos, conhecida principalmente pelo movimento em defesa do direito de voto aos negros. Eu vivia e trabalhava lá e fui co-fundadora de uma organização para jovens. Neste trabalho, ficou realmente evidente que havia um crescimento desenfreado de casos de violência sexual entre as jovens com quem lidávamos. Eram muitos casos, uns menos violentos, outros muito violentos. E eu sou uma sobrevivente da violência sexual. Então isso me sensibilizou imediatamente. Assim, surgiu a pergunta de como poderíamos nos conectar com elas. Como demonstrar empatia pela situação delas e falar sobre o processo de cura? E como fazê-las saber e entender que a cura é possível e que elas poderiam ajudar a acabar com a violência sexual em sua comunidade? "Me too" (eu também) eram duas palavras que eu gostaria de ter dito a outra jovem vários anos antes e perdi a oportunidade. Para mim, era uma questão de sair da zona de conforto e usar a minha própria história como uma forma de mostrar empatia por outras pessoas.
 
DW Brasil: Um desafio na luta contra a violência de gênero é o estigma projetado sobre as vítimas. A vergonha, a sensação de isolamento e de culpa. Como você vê a importância de ter alguém dizendo “isso aconteceu comigo também”? 

Tarana Burke: É uma luz resplandecente. É como se você acendesse uma luz...porque a violência sexual não há como desfazer. E ela é traiçoeira porque, ao mesmo tempo que é profundamente disseminada e atinge todos os grupos que conhecemos, é também profundamente isoladora. São duas coisas que operam ao mesmo tempo. Isso afeta tantas pessoas e, ainda assim, essas pessoas se sentem completamente isoladas. Vergonha, dúvida e culpa são coisas que crescem na escuridão. E o que um movimento como o #Metoo faz é revelar essa situação. Uma vez que ela é revelada, a vergonha não tem para onde ir. A pessoa se sente envergonhada porque pensa que é a única “olhe pra mim, sou uma pessoa estranha porque isso aconteceu comigo”. E aí você diz “não, aconteceu comigo também”. “Meu deus, aconteceu? Você sentiu isso, você sentiu aquilo?" E você diz: “Sim, senti todas essas coisas”. E você pensa: “Bem, talvez eu não seja louca”. E aí outra pessoa diz: “Aconteceu comigo também”. E por aí vai, e então existe um senso de comunidade. O processo de cura tem que acontecer em comunidade, e é isso que acontece quando você me diz #MeToo. Estamos construindo uma comunidade ao redor do mundo. 

DW Brasil: O #MeToo já teve um impacto enorme: um impacto concreto, um impacto de  conscientização. Mas o movimento também já recebeu críticas. Pessoas dizem que já foi longe demais, ou que se trata de um movimento para derrubar os homens. Como reagir a isso e manter o foco da discussão?

Tarana Burke: Acho que parte da razão pela qual eu estou aqui, em um festival como Cannes Lions, é porque precisamos das pessoas que têm controle sobre a narrativa para resgatar o rumo da discussão. Um dos maiores desafios do nosso trabalho agora é lutar contra essa distorção. É garantir que as pessoas entendam que essa narrativa atual de que se trata de uma caça às bruxas, de que fomos longe demais...todas essas coisas são contraproducentes para o trabalho que realmente tem que acontecer. O que eu tenho a dizer para essas pessoas é que, há nove meses, milhões e milhões de pessoas pelo mundo levantaram suas mãos e disseram juntas “Me too”. E as mãos delas ainda estão levantadas à espera. Porque nós estamos focados em outras coisas, menos nelas. Elas estão lá dizendo: “Espera, isso aconteceu comigo também”. E discutimos: “O que vai acontecer com tal pessoa? Será que ela vai conseguir o emprego de volta? Como vamos sair com alguém agora? Ou ‘Não sei como devo contratar mulheres agora...”

Estamos lidando com essas e outras questões periféricas enquanto as pessoas ainda estão dizendo: "Mas eu estou sofrendo. O que vocês vão fazer por mim". Acho que com o tempo essa questão da narrativa será resolvida, e poderemos falar sobre as nuances de tudo isso. Vamos entender que a violência sexual acontece em um espectro e esperamos que a responsabilização aconteça da mesma forma. Mas vamos fazer isso com integridade e não esquecer das pessoas que mais sofrem. Se fizermos isso com integridade, vamos conseguir. Só precisamos de tempo e espaço, sem pessoas nos interpelarem, dizendo que é exagero. Dizer isso é terrível.

DW Brasil: Como você disse, a violência de gênero acontece em todo lugar, no mundo inteiro. E eu li uma declaração sua muito forte dizendo que se a violência de gênero fosse vista como uma doença, a sociedade internacional a abordaria de maneira completamente diferente. Você poderia comentar sobre a percepção social da violência de gênero?

Tarana Burke: Se tornou tão normal e estamos tão socializados a aceitar as formas de violência de gênero, que já não enxergamos mais. Você consegue imaginar que 24 horas após #Metoo viralizar, 12 milhões de pessoas disseram #Metoo só no Facebook? Só com uma postagem no Facebook. Isso é indicativo do quão profundo e insidioso é esse problema. Nós temos um problema global. É o assédio sexual no trabalho, o assédio sexual nas comunidades, o abuso sexual infantil, o abuso a portadores de deficiência...São tantas coisas que se enquadram nessa categoria, mas todas geram o mesmo tipo de trauma.
 
DW Brasil: Este ano você recebeu o prêmio Ridenhour pela sua coragem, parabéns! Quanta coragem você acha que ainda será necessária para que as mulheres consigam acabar com com a violência de gênero, e o que você diria àquelas que estão lutando para encontrar essa coragem? 

Tarana Burke: Eu não acho que é a coragem das mulheres que vai acabar com a violência de gênero, acho que é a coragem da humanidade. As mulheres estão aqui sendo muito corajosas todos os dias. As sobreviventes da violência sexual estão sendo muito corajosas todos os dias. E eu nem estou falando da coragem de levantar a voz, mas de viver. Às vezes, a nossa própria existência exige coragem. Precisamos da coragem daqueles que não estão entre os sobreviventes. Essas pessoas precisam ser corajosas para pensar e agir de forma diferente. Corajosas o suficiente para desaprender o que sabem. Será necessária muita coragem para que aqueles que não são mulheres, nem sobreviventes digam: “Apesar deste problema não afetar a minha vida, eu não quero viver num mundo onde isso existe.”
 
DW Brasil: Algum dia você irá parar? 

Tarana Burke: Não, não, não. Há uma frase de Mark Twain que diz que os dois momentos mais importantes da sua vida são o dia em que você nasce e o dia em que você descobre o porquê de ter nascido. E o dia que eu descobri o porquê...A pergunta que fiz durante a maior parte da minha vida foi: por que isso está acontecendo comigo? Tinha que haver uma razão? Não fazia sentido que o Deus que eu conhecia tivesse permitido que eu sentisse esse tipo de dor e sofrimento sem uma razão. Um dia eu juntei todo o trauma, a dor e o peso que eu carregava e percebi que eles poderiam ser parte do meu propósito de vida. Eu não tenho que parar, é assim que eu sou.