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Escrever é traduzir-se

Simone de Mello18 de outubro de 2005

Tradução como ponte entre Ocidente e Oriente, entre o velho continente e os trópicos. Feira de Livros de Frankfurt abre estação coreana de leitura. Estudo investiga "filosofar poliglota" de Vilém Flusser.

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'Escritores constroem literatura nacional; tradutores, literatura mundial.'Foto: dpa

A Feira de Livros de Frankfurt, aberta ao público de 19 a 23 de outubro, elegeu a Coréia como espaço cultural de destaque este ano. Apesar de a Feira ser mais um megaevento de negócios do que de arte literária, o destaque de uma literatura estrangeira a cada ano acaba atraindo a atenção da opinião pública para línguas e culturas esquecidas pelo grande público.

Oriente e Ocidente espelhados

Por maior que seja o abismo cultural entre os dois países, a redescoberta da Coréia pela Alemanha por ocasião da Feira de Livros deste ano é um gesto de espelhamento. A história coreana do século 20 é um compêndio de rupturas.

A dominação imperialista pelo Japão em 1905; a divisão do país, ocupado por russos e americanos depois da Segunda Guerra; a Guerra da Coréia, de 1950 a 1953, que acirrou a separação entre os Estados socialista e capitalista: tudo isso deixou marcas significativas na literatura coreana.

A elaboração literária de uma trajetória de rupturas pode muito bem despertar a identificação dos leitores alemães. Pelo menos foi nisso que apostaram os editores pioneiros de literatura coreana no país.

Sartre e Adorno reimportados

Guardada a dimensão das diferenças históricas (o Muro de Berlim dificilmente se deixa comparar a uma guerra que vitimou seis milhões de coreanos), o tema da divisão de um mesmo povo em dois Estados e suas implicações, como perda da identidade cultural e separação de famílias, teriam chances de atrair leitores alemães.

A tematização da guerra e seus efeitos são centrais na obra de autores como Pak Wanso, Kim Won, Jo Jong Rae ou Lim Chul-Woo, cujos nomes ainda são praticamente desconhecidos na Alemanha. Na visão dos críticos literários, os paralelos históricos poderiam levar a interessantes comparações.

Brockhaus auf der Buchmesse
Estande da Editora Brockhaus na Feira de Livros de Frankfurt 2005Foto: AP

Apesar de a literatura da Coréia do Sul ter se ocidentalizado em grande medida desde a década de 60, elegendo o existencialismo francês e a Escola de Frankfurt como referenciais para codificar sua impotência ou ímpeto subversivo diante do regime ditatorial que perdurou até fim dos anos 80, ela continuou e continua sendo apreendida na Alemanha por sua singularidade, sobretudo lingüística.

Tradução a muitas mãos

"Nos livros coreanos aparece uma quantidade absurda de trocadilhos intraduzíveis", nota Günther Butkus, editor da Pendragon, de Bielefeld, uma editora pequena que já publicou 30 títulos de literatura coreana desde 1997. Em entrevista ao jornal de literatura da Universidade de Bielefeld, Lili, Butkus comenta a dificuldade de encontrar tradutores do coreano.

Raramente os livros são traduzidos por uma única pessoa. Muitas vezes, uma equipe de coreanos e alemães tem que se debater com o texto original e a tradução durante diversos meses. A barreira lingüística geralmente também torna os editores dependentes de traduções de literatura coreana para outras línguas na escolha de títulos para seus programas.

O ato de traduzir-se e retraduzir-se é o que move a filosofia do pensador tcheco Vilém Flusser, que viveu 32 anos no Brasil. Livro analisa "filosofar poliglota" de um pensador nômade. Leia resenha a seguir. >>>

Rainer Guldin – Philosophieren zwischen den Sprachen: Vilém Flussers Werk. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2005; 396pp.

Rainer Guldin – Philosophieren zwischen den Sprachen
Rainer Guldin – Philosophieren zwischen den Sprachen: Vilém Flussers Werk.

Pela primeira vez, a obra do filósofo e teórico tcheco Vilém Flusser (1920–1991) é apresentada no contexto intercultural em que deve ser lida. Como entender a teoria de mídia que o consagrou na Alemanha sem ter acesso às investigações fenomenológicas que nortearam a produção teórica desenvolvida no Brasil desde sua imigração, na década de 40, até seu retorno à Europa, no início dos anos 70?

Com o livro Philosophieren zwischen den Sprachen: Vilém Flussers Werk (Filosofar entre as línguas: A obra de Vilém Flusser. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2005; 396pp.), Rainer Guldin, professor da Universidade da Suíça Italiana, em Lugano, relativiza a imagem de Flusser como "teólogo de mídia", uma imagem unilateral bastante propagada na Alemanha. Para contextualizar a obra tardia de filósofo, Guldin resgata as origens do pensamento flusseriano no Brasil.

Exílio, nomadismo e pensar

"A dependência da obra tardia em relação aos primeiros trabalhos escritos no Brasil, a partir dos quais ela se desenvolveu em sucessivos surtos de tradução, permite afirmar o seguinte sobre sua obra integral: o desempenho essencial de Flusser não é tanto sua teoria de mídia tardia, mas sim uma abrangente antropologia de cunho fenomenológico ligada à filosofia da cultura."

A intenção primordial de Guldin não é recuperar a trajetória de Flusser desde a emigração de Praga, em 1939, para São Paulo via Londres, até sua morte num acidente de carro em 1991, retornando de sua cidade natal para a Alemanha, onde estava estabelecido como professor convidado da Universidade de Bochum.

O esboço biográfico que inicia o livro apenas recupera os fatos essenciais para a compreensão de um pensamento que nasceu da necessidade existencial de traduzir-se a si próprio e transportar-se de um mundo para o outro sem perdas.

O jogo e o gesto de escrever

Vilém Flusser
Vilém Flusser (1920-1991), em foto de 1989Foto: dpa

A ida para o Brasil, em fuga dos nazistas, foi forçada; o retorno para a Europa não deixou de ser uma reação ao golpe militar de 1964, mas sempre foi considerado voluntário. De qualquer forma, ao retornar à Europa, Flusser repetiu a experiência do exílio no sentido inverso. O que Rainer Guldin mostra com seu estudo é que o ato de traduzir e retraduzir representa o motor do pensar e da escrita flusseriana.

Guldin não apenas acompanha o princípio da tradução (ou a questão da tradutibilidade) como um fio de Ariadne através da labiríntica obra de Flusser, destacando a importância do jogo, da metáfora, da crítica à linguagem, até o desenvolvimento de uma filosofia da mídia. O estudo também destaca o movimento da tradução e retradução como prática essencial de um filosofar poliglota engendrado no próprio ato da escrita.

Tradução como chave de leitura

"Será que a relação das quatro línguas em que Flusser escrevia [português, alemão, francês e inglês] mudou no decorrer dos anos? Qual a relação das reflexões teóricas e metodológicas de Flusser com o processo de tradução? (...) Como o ato de traduzir se associa ao ato de reformular ou reescrever?" Estas são algumas das questões abordadas por Guldin na investigação da escrita multilíngüe de Flusser.

Apesar de não ir muito a fundo na especificidade do Flusser brasileiro e no contexto em que sua filosofia surgiu e se desenvolveu em seu primeiro país de exílio, Guldin descobre no princípio da (re)tradução uma chave de leitura que permite acessar as diversas faces do filósofo, sem reduzi-las a um sistema (o que com certeza seria vão...).