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"Eu estava em guerra contra mim mesmo"

Andrea Grunau (lpf)30 de março de 2016

Atentados deixam para trás mortos, tristeza e a pergunta: "Por quê?". Kai tinha tudo planejado, mas mudou de ideia no último minuto. Primeiro vieram as piadas na escola, depois a paranoia, até chegar ao desejo de morrer.

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Silhueta de jovem num dia de sol
Foto: DW/A. Grunau

Tenho que tocar a campainha e mostrar minha identidade para entrar na prisão de regime aberto. Os prisioneiros têm permissão para circular livremente, e, durante o dia, podem ir ao trabalho ou à escola. Um jovem magro vem até mim e diz que devo chamá-lo de Kai. Ele sorri, aperta a minha mão e me conduz à sala da psicóloga da prisão. Aos 16 anos de idade, o jovem alemão, de comportamento amigável, tinha planos de matar muita gente – e foi condenado a uma pena de quatro anos e meio por tentativa de assassinato.

Certa noite, Kai chamou a polícia para reclamar de uma perturbação da paz. Ele esperou pelos policiais deitado no escuro e os atacou com uma besta (uma espécie de arco e flecha) e um facão para que eles fossem forçados a atirar nele. "Suicídio por policial" era algo sobre o qual ele tinha lido. No entanto, a flecha da besta ficou presa no colete de proteção, e o facão apenas arranhou a vítima. Os policiais sofreram ferimentos leves e reagiram calmamente. Eles usaram lanternas para cegar o agressor e gritaram: "Para o chão!" Kai se rendeu.

Logo ficou claro que o garoto tinha outros planos: explosivos foram encontrados no quarto dele. A polícia evacuou o prédio até que todos os dispositivos fossem desativados. Kai havia encontrado instruções na internet sobre como construir bombas de pregos e coquetéis molotov. "À noite, quando minha mãe saía, eu sentava em frente à TV e extraía pólvora dos fogos de artifício do Ano Novo", lembra.

Investigadores recuperaram arquivos deletados de seu computador e encontraram anotações sobre planos de um atentado. Era claro que o jovem pretendia matar muitas pessoas: na escola, na zona de pedestres da cidade e num café. "Eu mudei de plano centenas de vezes", diz Kai. Em seu julgamento, as anotações foram lidas em voz alta durante horas. Era difícil aguentar, diz o jovem, agora com 19 anos de idade. Ele conta que teve que fechar os olhos e os ouvidos.

Jovem sentado num banco
Kai planejou um atentado durante muito tempo; hoje ele quer impedir que outros cometam atos do tipoFoto: DW/A. Grunau

Ser diferente

A maioria dos prisioneiros na penitenciária tem cabelo curto, músculos definidos e gosta de rap, diferentemente de Kai. Agora ele consegue ser diferente. "A vida cotidiana na prisão já é uma terapia, assim como as conversas com os outros detentos. Eles perguntam por que eu gaguejo e escutam quando explico. Então, tudo fica resolvido."

Gaguejar e ser ridicularizado faziam parte da vida de Kai desde pequeno. Na escola, as outras crianças tiravam sarro dele. Ele não sabia se defender verbalmente, e a violência não era uma opção. As coisas pioraram no Ensino Médio, quando até mesmo os professores fazem piada com a sua gagueira. Em meio à terapia diária contra o problema na fala, as grandes quantidades de deveres e a pressão por um bom desempenho, Kai se sentia "um nada".

Falta de sono e paranoia

A mãe solteira chegava tarde do trabalho, e o pai sempre esteve ausente. Kai passava o tempo todo no computador, navegando na internet e jogando jogos de tiro. Quanto pior ele se sentia, mais agressivos se tornavam os jogos em que ele era um herói. O jovem conta que foi nessa época que sua personalidade se dividiu entre a do Kai "normal" e a do que queria morrer e usar violência. O Kai violento assumia cada vez mais o controle.

Ele se lembra de que mal dormia. Quando desligava o computador, só tinha duas horas até que o despertador tocasse. Ele ficava deitado na cama ouvindo música. Pesquisadores alertam que a falta de sono pode levar à paranoia. E, de fato, Kai achava que estava sendo perseguido e nunca saía de casa sem uma faca. Ele sentia como se todos estivessem contra eles. "Eu estava numa guerra contra mim mesmo", diz.

Antes que alguém o atacasse, ele começou a planejar um "ataque preventivo", que deveria ser o mais espetacular possível, como o massacre de Columbine, nos EUA. Na prisão, a psicóloga lhe deu um livro que contém anotações dos assassinos de Columbine, chamado Ich bin voller Hass - und das liebe ich (Estou cheio de ódio e adoro isso, em tradução livre).

"Era exatamente assim que eu me sentia", diz Kai, que conta que gostava da sensação de "poder que acompanha o ódio e a violência". Ele começou então a construir bombas e encomendou uma besta, uma machete e uma faca pela internet.

Livro "Ich bin voller Hass - und das liebe ich"
Cai ganhou da pscicóloga o livro "Ich bin voller Hass - und das liebe ich" ("Estou cheio de ódio e adoro isso"), do jornalista alemão Joachim GaertnerFoto: DW/A. Grunau

Declaração de amor

O nome de uma garota estava na lista de Kai antes de executar o massacre. "Ela era a única pessoa além da minha mãe com que eu nunca gaguejava", conta. Mas os sentimentos não eram correspondidos, e ele decidiu levar seus planos violentos adiante.

A mãe de Kai começou a ficar preocupada e pensou em pedir ajuda a uma psicóloga. Mas amigos e parentes a fizeram desistir, dizendo que o comportamento do garoto era normal na adolescência.

A mãe se lembra da noite antes do ato. O filho estava carinhoso como costumava ser quando pequeno. No dia seguinte, ela perguntou o que estava errado com ele, que chorou e disse não saber. A persistência da mãe mexeu com ele. Quando ficou sozinho em casa, pegou sua bolsa esportiva para colocar os explosivos. E, de repente, pensou: "Você não pode fazer isso."

Ele começou a correr pelo apartamento e decidiu abolir a parte do massacre dos planos. Ele queria morrer, e a polícia deveria atirar nele. Mas sobreviveu graças à resposta calma dos policias. "Fizeram tudo certo", diz hoje o jovem, que pediu desculpas a eles no tribunal.

Recomeço

Na prisão, Kai fez terapia e uma formação como técnico em eletricidade. Ele começou a frequentar uma escola noturna para obter o diploma do Ensino Médio e pensa em ir para a universidade. À noite, a mãe o levava de volta para a prisão. "Tenho sorte de ter uma mãe que faz tanto por mim", diz ele.

Kai começou a se interessar por psicologia e serviço social desde que trabalha para um programa de prevenção. Ele quer evitar que outros cometam crimes violentos. Hoje, o jovem diz que se arrepende apenas do dano que causou para outras pessoas, mas não da maneira como as coisas ocorreram. "Tornei-me o que sou por causa do que aconteceu. É claro que algo tão extremo não deveria ter que acontecer."

Após longas conversas com Kai, uma analista externa decidiu que o jovem poderia ser liberado antes do fim da pena. Os juízes concordaram, e desde o início deste mês, Kai está livre novamente.