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Felicitas Hoppe e as divisões do eu contemporâneo

26 de fevereiro de 2013

Mais jovem escritora a receber o Prêmio Georg Büchner da Academia Alemã de Língua e Poesia em muitos anos, Hoppe trafega entre o Alto e Pós-Modernismo, entre história e biografia, de um lado, e vidas fictícias, do outro.

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Foto: picture-alliance/dpa

Em 27 de outubro de 2012 foi anunciado que o Georg Büchner daquele ano, mais prestigioso prêmio literário da Alemanha, iria para a contista e novelista Felicitas Hoppe. Concedido desde 1951 pela Academia Alemã de Língua e Poesia, o reconhecimento confirma oficialmente o sucesso crítico que tem acompanhado a autora alemã desde a publicação da coletânea de contos Picknick der Friseure (Piquenique dos cabeleireiros), em 1996.

O comunicado da Academia referia-se a sua "linguagem lacônica e lírica" e a um "universo narrativo em que a questão fundamental de uma existência pós-moderna é trabalhada com uma imaginação livre e libertária".

Biografia fictícia

Tal reconhecimento chega após a própria autora ter ironizado as posturas megalomaníacas de escritores na autobiografia fictícia Hoppe (ed. S. Fischer, 2012), na qual cria para uma personagem chamada Felicitas Hoppe a vida que ela gostaria de ter tido, com uma infância não na pequena cidade alemã de Hamelin, mas no Canadá, onde passam por sua vida o jogador de hockey Wayne Gretzky e o pianista Glenn Gould.

Na página da editora, a escritora (ou a personagem) foi ainda mais adiante e publicou uma entrevista consigo mesma, intitulada O melhor que já se escreveu sobre Felicitas Hoppe até hoje, na qual se posiciona entre o grande jogador e o grande pianista. Amplamente comentado na imprensa, o livro foi definidor para a decisão do júri do Prêmio Georg Büchner.

Buchcover: Hoppe - Paradiese, Übersee
Capa do livro "Paradiese, Übersee" (Paraísos, Ultramar)

Contendo até mesmo notas e uma bibliografia fictícia, o livro confirma a referência da Academia ao pós-modernismo. Afinal, a técnica de mescla entre realidade e ficção acadêmicas se tornou uma característica marcante de autores ditos pós-modernistas, como Vladimir Nabokov em Pale fire (1962) ou, mais recentemente, David Foster Wallace em Infinite jest (1996).

Biografias e viagens

Mas, ao mesmo tempo, Felicitas Hoppe parece integrar melhor o time de autoras que, desde o Alto Modernismo, vêm questionando, de maneira bastante inteligente, a tese de que certos gêneros literários pertenceriam ou seriam mais indicados ao gênero feminino. Dois exemplos são Gertrude Stein com Autobiography of Alice B. Toklas, ou, nos anos 80, Lyn Hejinian em My life.

Esse ingresso na criação de uma realidade fictícia vem após trabalhos em que Felicitas Hoppe se dedicou à pesquisa de figuras verdadeiramente históricas – seu Johanna (2006), sobre Joana d'Arc –, ou se baseou em experiências biográficas – sua viagem de um ano a bordo de um navio cargueiro, relatada em Pigafetta (1999).

"Literatura de viagem" é um conceito invocado frequentemente ao se discutir o trabalho de Hoppe. Em artigo sobre a autora para a revista Der Spiegel, o crítico Hans-Jost Weyandt a situou como sucessora de praticantes consagrados do gênero, como Peter Handke, Urs Widmer e W.G. Sebald. Na literatura brasileira, tanto canônica quanto contemporânea, o gênero "de viagem" é um dos mais incomuns, sendo uma das poucas exceções Mongólia (2003), de Bernardo Carvalho.

Felicitas Hoppe
Felicitas Hoppe ganhou Prêmio Büchner após lançar autobiografia fictícia "Hoppe".Foto: Aygül Cizmeciogl

Sinais de permanência

As viagens de aventura não são, porém, as mais comuns na vida recente de Felicitas Hoppe. Ela lecionou como professora convidada nas instituições norte-americanas de Dartmouth College, New Hampshire, ou Georgetown University, Washington, entre outras. A obra da alemã inclui os livros de contos Das Richtfest (1997),Die Torte (2000), Fakire und Flötisten (2001), Verbrecher und Versager: Fünf Porträts (2004), Der beste Platz der Welt, e o romance Paradiese, Übersee (2003).

Felicitas Hoppe é a mais jovem escritora a receber o Georg Büchner em muitos anos, e a primeira mulher desde Brigitte Kronauerm, em 2005. A celebração na imprensa indica também um trabalho que não exatamente abala os fundamentos políticos e literários da língua ou do país – como ainda são capazes autores como o pouco mais velho Rainald Goetz (1954) ou o pouco mais jovem Christian Kracht (1966).

Em tempos de estilização da própria vida em redes sociais, o último romance de Hoppe também encontra ecos comerciais bastante apropriados. No entanto, em suas seis décadas de existência, a Academia que concede o mais prestigioso prêmio da língua tem galardoado autores incontornáveis do cânone germânico. Portanto, se os seus poderes proféticos ainda estiverem afinados, a escritora Felicitas Hoppe pode viajar o quanto quiser, mas por ora está aqui para ficar.

Autor: Ricardo Domeneck
Revisão: Augusto Valente