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Literatura árabe

15 de setembro de 2011

As revoltas no mundo árabe inspiraram uma série de obras, que tentam elucidar o que ocorreu na região. Alguns escritores focam os protestos, enquanto outros discutem o futuro papel da arte e da literatura.

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Rebelião nas ruas não trouxe apenas mudanças políticasFoto: AP

Em dezembro de 2010, um jovem pôs fogo em si mesmo em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid. Seu nome era Mohamed Bouazizi. Com esse "gesto de sacrifício", como descreveu o escritor franco-marroquino Tahar Ben Jelloun durante a cerimônia de abertura do Festival de Literatura de Berlim, o jovem de vinte e tantos anos desencadeou, sem querer, uma série de revoltas, cujas consequências de longo prazo ainda são incertas, mas cujo significado tem sido comparado ao da queda do Muro de Berlim.

Ben Jelloun ficou tão tocado, que resolveu narrar, por meio da ficção, os últimos dias de Bouazizi. Seu personagem Mohamed, em Par le Feu (Pelo Fogo), representa todos os homens humilhados. "Eu o vi em sua cama e pensei comigo: 'Esse homem teve uma vida, uma juventude, um amor fracassado, decepções'. Eu quis reaver sua humanidade", afirmou Ben Jelloun à Deutsche Welle.

Plakat Mohamed Bouazizi
Mohamed Bouazizi desencadeou, sem querer, uma série de revoltas no mundo árabeFoto: picture alliance/dpa

Para o escritor, o principal resultado da Primavera Árabe foi a recuperação da dignidade e da honra de toda uma geração. Sua incursão corrosiva pelas mentes de Zine El Abidine Ben Ali e de Hosni Mubarak, quando estes se dão conta de que estão perdendo o controle do poder, publicada em 2011 em L'étincelle (A Ignição), é a modesta vingança de Ben Jelloun frente à constatação de que esses dois homens privaram, por tanto tempo, tanta gente do karama

Essa palavra em árabe, como explica o escritor Johnny West na introdução de seu livro Karama! Journeys through the Arab Spring (Karama! Viagens pela Primavera Árabe), combina as noções de dignidade, honra e respeito a si mesmo. No livro, que o próprio West chama de "jornalismo de protagonistas", o autor possibilita uma compreensão a respeito do que se passa com aqueles que estão querendo arriscar suas vidas a fim de reaver o karama.

Da mesma forma que Ben Jelloun, West também tem certeza de que isso não pode ser tirado das pessoas. Mais ainda, como diz à Deutsche Welle, "nunca mais haverá, de novo, nenhum monopólio de pensamento, não importa que grupo assuma o poder nesses países. A oposição intelectual e a liberdade de pensamento não serão mais aniquiladas", completa. 

Linha tênue entre o digno e o indigno 

Mesmo que sejam bastante otimistas, os dois escritores não são ingênuos. Ambos são absolutamente cientes da suscetibilidade da situação na região e dos muitos obstáculos a serem vencidos. Eles sabem que será um desafio para muitos manter a sensação de estarem preservando o karama. Ben Jelloun alerta que, do ponto de vista político, é preciso permanecer muito atento, já que voltar para uma ditadura é bem mais fácil que estabelecer a democracia.

West sugere que os Estados Unidos e a União Europeia implementem um plano equivalente ao Plano Marshall [de recuperação dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial], mas ao mesmo tempo ele demonstra sérias dúvidas de que isso vá acontecer, dadas as atuais circunstâncias.

Tahar Ben Jelloun
Tahar Ben Jelloun: literatura é imprescindívelFoto: picture-alliance/dpa

"O perigo de não resolver os problemas econômicos é que a sensação de inutilidade vai acompanhar milhões de pessoas todos os dias, que não terão emprego. Em algum momento, a glória da revolução não estará mais presente na memória dessas pessoas", prevê West com cautela. 

Ben Jelloun e West dividem a opinião de que eventos culturais e a literatura desempenham um papel importante neste contexto. "Tem gente, inclusive eu, que acredita que a explosão da cultura popular árabe foi a mudança mais importante que aconteceu na região nos últimos 20 anos, tornando insignificantes acontecimentos como guerras, negociações pela paz, campanhas contra o terrorismo e mudanças de regime", escreve West em seu livro.

Ele afirma que a blogosfera árabe está cheia de poemas, histórias em quadrinhos e reportagens, o que prova a importância da palavra escrita. E enquanto Ben Jelloun reconhece, em Berlim, que a literatura não pode fazer muita coisa frente à tragédia humana, ele acredita, contudo, que é sua tarefa acompanhar a realidade, sem mentiras e com sinceridade. "Imagine uma sociedade sem produção literária, sem teatro, cinema, música! É impossível! A cultura é indispensável. Precisamos sonhar, imaginar e cultivar nossos sentidos. Isso é tão vital quanto se alimentar", conclui. 

"Os políticos deveriam ter se dedicado mais à leitura" 

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Achaari aponta para novas tendências na literatura árabeFoto: Ismail Bellaouali

Em uma mesa-redonda durante o festival, o marroquino Mohammed Achaari, vencedor deste ano do Prêmio Internacional de Ficção Árabe, afirmou que a literatura árabe contemporânea está à altura do melhor da literatura mundial, exatamente por respeitar rígidos critérios estéticos e ser significativa em termos de conteúdo.

Ele relata que décadas depois de os poetas terem sido punidos, torturados e presos, temas como o exílio e a morte, vistos antes como tabus, surgem nas obras dos escritores, bem como assuntos relacionados aos direitos humanos.

Nos últimos anos, o formato do romance mostrou-se como um espaço de relativa liberdade para autores jovens tratarem, em suas obras, de temas como a injustiça social, bem como de outros tópicos tradicionalmente inaceitáveis como política, religião e sexo. Achaari diz em tom quase jocoso que, se os políticos tivessem se dedicado mais à leitura, talvez tivessem percebido que as sociedades dos países que governavam estavam em crise.

Para o autor iraquiano Fadhil Al-Azzawi, que vive no exílio, é absolutamente crucial que os escritores do mundo árabe perguntem a si mesmos, com todo cuidado, sobre o que devem escrever, agora que seus países se encontram em transição. "A palavra-chave é a luta entre a modernidade e o extremismo, o tradicionalismo e modelos antiquados de pensamento", diz ele.

"O que é mais importante para a literatura e para as pessoas nas ruas é verificar como será possível modernizar nossas sociedades, como acabar  com o fundamentalismo através do desenvolvimento e como abrir novos horizontes tendo em vista um desenvolvimento implacável, livre e moderno", fala Al-Azzawi.

Se os jovens mantiverem suas recém-adquiridas noções de karama e nunca mais forem guiados pelo desespero, como o que os levou a imitar Mohamed Bouazizi, esse desenvolvimento será vital.

Autora: Anne Thomas (sv)

Revisão: Roselaine Wandscheer