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Hedonismo sacrossanto a gosto

Soraia Vilela20 de agosto de 2005

Milhares de jovens reunidos num evento que gira em torno da figura de um papa. Será um Woodstock religioso, em que as drogas foram substituídas pelo incenso, o álcool pela água benta e a subversão pela submissão?

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Jovens reunidos sob o signo da religiãoFoto: dpa

"Já não se vêem mais jovens como antigamente." A frase talvez resuma a sensação daqueles que passaram da casa dos 30, tendo vivenciado, na própria juventude, os resquícios do flower power dos 70 e a rebarba da rebeldia punk. O motivo do susto de hoje? Fiéis abaixo de 20, gritando pelas ruas em nome da religião.

E o que não dizer da cena, em plena estação de metrô de uma cidade alemã – Colônia – que se orgulha de sua atmosfera não exatamente conservadora: um grupo de jovens recrimina um de seus agregados simplesmente por este estar fumando pelas ruas. "O que diria mamãe sobre isso?", perguntam quase em coro.

Prato cheio para sociólogos

Love Parade 2001
Ravers nos anos 90 x religião no novo milênio?Foto: AP

A Jornada Mundial da Juventude, que acontece na cidade e move milhares de pessoas (e euros) serve, no momento, para o deleite de sociólogos de plantão. Pesquisadores de Trier e Koblenz se dedicam a analisar expectativas, experiências e motivação dos participantes, antes e durante o evento. Especialistas em Comunicação Social de Bremen se debruçam sobre o papel da mídia e estudiosos de tribos urbanas da Universidade de Dortmund têm no megaevento um prato cheio.

É o caso da socióloga Michaela Pfadenhauer, que se tornou conhecida para além das fronteiras acadêmicas com sua pesquisa sobre a cena tecno e as grandes raves dos anos 90 na Alemanha. "As cenas", diz a socióloga ao diário Frankfurter Rundschau, "são comunidades pós-tradicionais, que respondem melhor ao nosso tipo de sociedade que a família ou associações."

Ou seja, numa família se nasce, sem opção de escolha. Organizações formais exigem, muitas vezes, rituais de entrada e justificativas de saída. As cenas ou tribos, não. Pode-se passar a fazer parte de uma delas sem qualquer explicação e deixar de freqüentá-la da noite para o dia.

Além disso, é possível pertencer a várias ao mesmo tempo: a dos ravers, dos hackers, hooligans, rappers, etc, etc. Segundo etnólogos em entrevista à imprensa alemã, somente os góticos se subdividem em 18 agrupamentos, cada um com sua ideologia de ocasião.

Bonzinhos, suaves e conformes

Pilgerrucksack und Pilgerbuch für den Weltjugendtag
Arsenal para rezarFoto: dpa

"A diversidade das cenas é também o resultado de uma luta pelo poder dos signos", analisa o semanário Die Zeit. Ou seja, a velha história da indústria cultural que devora e tritura, transformando tudo em mercadoria pronta para o consumo. Inclusive a religião. A questão analisada pela socióloga Pfadenhauer é extamente esta: existe entre os jovens uma espécie de "cena religiosa"? Ou pode-se falar até mesmo num movimento?

Cena, tribo, movimento ou não, fato é que milhares desses jovens estão reunidos em Colônia. Acoplados de singelas mochilas azul-bebê (símbolo do "eu sou bonzinho, suave e, acima de tudo, conforme") e em grande parte com um chapéu de palha sobre a cabeça. Deixando estupefatos os que não sabiam ainda da proximidade da religião com a estética country para além dos domínios de Bush no Texas e seu God bless America.

"Abstinência funciona"

"A polêmica contra a caretice, uma das ocupações prediletas de contraculturas no passado, perdeu seu sentido, pois o desvio da regra passou a ser normal. Os que pesquisam as tendências da juventude olham nostálgicos para um passado em que as subculturas jovens ainda eram um desafio para o mainstream", observa o semanário Die Zeit.

Se hippies e punks provocaram dores de cabeça em seus pais, os jovens de hoje observam sem qualquer sinal de oposição cartazes contra o sexo antes do casamento. "Abstinence works" (leia-se abstinência sexual), estampa um desses pelas ruas de Colônia, sobre a foto de um casal de noivos.

Rheinenergie Stadion in Köln Eröffnungsfeier zum Weltjugendtag
Cerimônia de abertura da Jornada Mundial da JuventudeFoto: AP

No lugar do protesto de então, surgem hordas de adolescentes em busca de entretenimento rápido e aptos a seguir as coreografias do establishment. Mesmo que disso faça parte assistir de longe ao passeio de barco de um papa idoso e servir de figurante para uma verdadeira apoteose do kitsch. A volta do conservadorismo e um dar de ombros a movimentos sociais ou políticos são creditados, em parte, à tendência de uma sociedade que envelhece e valoriza cada vez menos a cultura jovem.

Juventude não é mais in

Thomas Ostermeier
Thomas OstermeierFoto: DPA

O dramaturgo Thomas Ostermeier compara em texto publicado pelo Die Zeit a diferença entre os jovens de sua geração e os de hoje: "Nós vivemos uma época em que era en vogue ser jovem. Fomos compreendidos como uma geração e ganhamos tempo e espaço para nos articular. Com isso, ganhávamos força e autoconfiança".

Já os jovens de hoje desfilam sem pudores pelas ruas gritando histericamente o nome de um papa. "O orgulho made in Germany sobre um produto que não se compra dentro do país, mas que em outros lugares tem, estranhamente, um efeito sensacional", observa o Die Zeit em texto sobre a visita do pontíficie a sua terra natal, que não morre de amores pelo próprio.

Woodstock da água benta

Será que a consolidação de uma era pós-religiosa, como proclama o discurso secular europeu, é coisa do passado? Ou será que o evento das mochilinhas azuis é encenado de forma tão profissional, que seus adeptos ocasionais são de tal forma deglutidos, que nem ao menos percebem do que fazem parte? Um Woodstock em que as drogas foram substituídas pelo incenso, o álcool pela água benta e a subversão pela submissão? A fé comprada como entretenimento e trechos da Bíblia prontos para serem baixados na tela do celular.

Envoltos na ordem e no progresso

Jugendliche aus Brasilien auf dem Weltjugendtag im RheinEnergieStadion in Köln
Brasileiros com bandeira durante o eventoFoto: Simone Hoffmann

E, para completar, doses de um nacionalismo à espreita. Pelas ruas de Colônia, esses milhares de jovens circulam orgulhosamente envoltos nas bandeiras de seus países de origem, inclusive na ordem e progresso verde-amarelos. Além dos próprios alemães, muitas vezes agarrados aos símbolos de suas regiões. Retorno de uma cadeia de valores que prioriza a identidade nacional, numa Europa com a história que tem?

Pelo sim, pelo não, sociólogos e defensores de uma sobriedade que se distancia do evento abriram a boca nos jornais alemães dos últimos dias. A celebração hedonista dos jovens, a busca desesperada da Igreja por uma imagem pop e emoções celebradas em êxtase foram dissecadas e discutidas.

Como por exemplo nas observações de um professor de Sociologia no diário Frankfurter Rundschau: "Comparem-se imagens de massas entusiásticas através dos tempos, sejam quais forem os seus motivos: elas são sempre imagens de um esvaziamento expressado através do corpo e da mímica." Massas em êxtase: os alemães, diga-se de passagem, sabem muito bem o que é isso.