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Intercultural, resistente à transferência?

Simone de Mello23 de março de 2006

O festival de música Maerzmusik, realizado até 26 de março, em Berlim, mostra complexidades e sutilezas do intercâmbio cultural entre Ocidente e Extremo Oriente.

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Música, linguagem universal e local

O Festival de Música Atual Maerzmusik, realizado todo ano em março, em Berlim, elege o Oriente como destaque em sua mais recente edição. Não o Oriente islâmico, para acompanhar a atual onda de interesse político e cultural pelo mundo muçulmano. Mas sim o Japão, foco de uma longa tradição de intercâmbio com o Ocidente, sobretudo a partir da abertura definitiva do país para o oeste do mundo, na segunda metade do século 19.

Com a denominação de "música atual", o festival pretende escapar a rótulos restritos demais, como a Música Nova, e às associações elitistas desencadeadas pela mera menção da música contemporânea. Atual é "tudo aquilo que está à altura de sua época", explicou o diretor do Berliner Festspiele, Joachim Sartorius, na abertura oficial do festival, 17 de março, sem detalhar o que seria isso. De qualquer forma, o nome do festival inclui o termo "Merz", cunhado pelo artista e poeta alemão Kurt Schwitters em suas colagens dadaístas, o que revela seu interesse apriorístico pelo experimental.

A idéia de interculturalismo implícita neste evento musical realizado apenas pela quinta vez e já praticamente institucionalizado em Berlim é o intercâmbio tanto entre esferas geográficas como entre estratos culturais diversos. Japão e Ocidente, vanguarda erudita e pop eletrônico.

De hoje, há mil anos

MärzMusik in Berlin As I Crossed a Bridge of Dreams
Vivian Lüdorf no papel de Lady Sarashina, em 'As I Crossed a Bridge of Dreams', ópera de Peter EötvösFoto: picture-alliance/ ZB

Com a escolha do Japão como destaque, o termo "atual" ganha nuances específicas. Uma obra literária como Sarashina Nikki, diários de viagem de uma nobre no Japão medieval do fim da era Heian (794 a 1185), serviu de base para a ópera As I crossed a Bridge of Dreams, do compositor e regente húngaro Peter Eötvös. "Uma mulher de hoje que também viveu há mil anos", diz Eötvos, destacando que clássico significa atual.

O fascínio que o Japão exerce pelo cultivo de uma tradição em certos âmbitos praticamente intacta se reduplica diante do alto grau tecnológico desta sociedade ao mesmo tempo tão oriental e tão ocidentalizada. O que torna este intercâmbio ainda mais complexo é, sobretudo, o fato de a maioria dos compositores contemporâneos japoneses terem estudado na Europa ou nos Estados Unidos e muitas vezes terem redescoberto aspectos de sua própria tradição através das lentes do Ocidente.

Uma jovem compositora como Misato Mochizuki (1969), em contato com as investigações musicais praticadas no Ircam (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), em Paris, mistura física quântica e poética dos elementos em sua trilogia Etheric Blueprint, cuja última parte estreou neste Maerzmusik. Aqui os elementos água e ar servem como ponto de partida para uma composição que opera com descontinuidade estrutural e destaca o ruído como material da música, misturando simplicidade oriental com o experimentalismo lúdico do Ocidente.

Identificação e diferença

A redução da arte japonesa, sob forte influência da estética zen-budista, foi o que a mais atraiu a vanguarda moderna do Ocidente. Na música contemporânea européia e norte-americana, a atenção começou a se voltar mais explicitamente para o Japão nos anos 40 e 50, com compositores como John Cage e Giacinto Scelsi. Mas a concisão de uma forma poética como o haicai, por exemplo, continua inspirando compositores, como o alemão Hans Zender em diversas de suas peças do fim da década de 80.

Se a modernidade de uma linguagem sintética seduz pela identificação com o modernismo despojado, o uso de recursos orientais na música também pode visar a um efeito de estranhamento. Este é o caso, por exemplo, das inúmeras composições que incorporam instrumentos orientais, como o shô, que desde John Cage continua sendo usado por compositores contemporâneos.

Transistor made in Japan

Com a estréia live da peça radiofônica trans-sister radio, do DJ americano Terre Thaemlitz e do japonês Saki, o festival destaca o transgênero como prática de travestimento intercultural. Codificada como programa de rádio, a peça dos dois trans residentes no Japão interpola textos confessionais de um americano que deriva sua prática de dramas familiares e um japonês que costuma viajar vestido como uma colegial, deixando-se fotografar em pontos turísticos.

Trans-sister radio aborda o problema da migração, destacando a dificuldade de passar pelo controle de fronteiras representando um sexo diferente do que consta no passaporte.

Toda a programação do festival leva a pensar justamente no livre trânsito cultural facilitado pelas possibilidades midiáticas e a crescente diluição de identidades culturais locais, por um lado, e, por outro, na diferença cultural que persiste como transfer resistor (transistor é o que resiste à transferência).

No caso do Extremo Oriente, esta diferença indissolúvel é ainda mais nítida. E os resultados do intercâmbio mostram que, quanto maior a resistência à assimilação, maior a complexidade das manifestações interculturais.