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Jesus voltou

J.P. Cuenca
10 de janeiro de 2020

Em séries da Netflix, justificando censura em ordens jurídicas e até em enredo de escola de samba, nunca se falou tanto em Jesus Cristo.

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Foto da série "Messiah", da Netflix
Série "Messiah" projeta as consequências hipotéticas de um retorno de CristoFoto: picture-alliance/Everett Collection/Netflix

O Estado Islâmico se aproxima de uma Damasco sitiada e destruída. "Apenas um ato de Deus é capaz de evitar sua conquista pelo Califado", diz a apresentadora de TV. Enquanto tanques apontam seus canhões para a cidade, um jovem de cabelos longos sobe na carcaça de um carro e começa a discursar em árabe: "Ouçam, irmãos e irmãs. Eles fingem pregar a palavra de Deus, e tudo o que fazem é distorcê-la. Está escrito no livro: 'Eles serão castigados neste mundo. Eles provocaram a mais implacável ira divina, uma derrota desonrosa os espera!'"

Alguns muçulmanos na multidão protestam, é proibido citar errado as escrituras. Mas o homem insiste e diz coisas como: "Acreditem quando digo que Deus derrotará os seus inimigos! Deus os afastará! A salvação está próxima! A história chegou ao fim!"

O bombardeio começa ao mesmo tempo em que uma tempestade de areia de proporções bíblicas se aproxima, cobrindo a cidade. Todos correm, menos o homem que discursa, responsável pelo milagre que logo afastará as tropas do ISIS. Ele é al-Masih, e ao longo dos dez capítulos da série Messiah, que estreou na Netflix no primeiro dia de 2020 sob protestos de cristãos e muçulmanos, será identificado como Jesus redivivo, terrorista islâmico, Anticristo, imigrante ilegal, charlatão e santo. O seriado, quando funciona, é um passeio divertido sobre como o mundo – e a mídia, com destaque para a CNN – reagiria a uma volta de Jesus.

Colunista J.P. Cuenca
Colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

É exatamente o mesmo mote do enredo da Mangueira para 2020, "A verdade vos fará livre". O carnavalesco Leandro Vieira imagina Jesus hoje "pobre e mais retinto", descendo "pela parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade", "estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão necessário".

Além da passarela em fevereiro, a recontextualização do Cristo num cenário socialmente desigual e intolerante ganha tintas absurdas que ultrapassam a simples representação artística no Brasil. País onde uma decisão da Justiça reforçou o dogmatismo neopentecostal hoje no poder, censurando o inócuo especial de Natal do Porta dos Fundos – poucos dias após o atentado de um grupo integralista contra sua sede. Até então, apenas a Arábia Saudita tinha censurado conteúdos da Netflix.

A decisão, depois derrubada pelo STF, foi de um tal Benedicto Abicair, famoso por defender os privilégios da classe com a justificativa de que juízes são aprovados em concursos muito difíceis e "meritocráticos", sendo que ele mesmo nunca prestou um. Nomeado pela governadora Rosinha Garotinho para o TJ/RJ, Abicair absolveu em voto Bolsonaro dos crimes de homofobia e racismo em 2017, sob a justificativa de que, em uma democracia, não seria possível "censurar o direito de manifestação de quem quer que seja". Seria apenas irônico se não fosse trágico: o grande crime do grupo de humoristas foi justamente ter perfilado Jesus como gay.

Com estes pensamentos me assombrando, resolvo de ontem para hoje maratonear as duas temporadas de Fleabag, série britânica escrita e atuada por Phoebe Waller-Bridge, vencedora do Globo de Ouro. Acreditava tratar-se de uma comédia dramática sobre jovem mulher independente em crise, mas logo descubro que a segunda temporada é sobre uma história de amor com um padre católico, com citações da Bíblia e longas sequências na igreja, sacristia e confessionário. Vou ouvir música, e meu Spotify lembra que os discos que mais ouvi no ano passado foram Jesus is King, do Kanye West, e Ghosteen, do Nick Cave, um autor que não precisa ser explicitamente religioso para usar referências bíblicas e cristãs em toda sua discografia.

Se estações de metrô do mundo inteiro ainda guardam propagandas de Os dois papas, a Netflix ainda tem em sua grade recente uma série documental sobre uma ordem cristã envolvida com lobbies em Washington, A família, e uma estreia prometida para este ano, The American Jesus, sobre um jovem americano de 12 anos que descobre ter poderes sobrenaturais e, claro, ser uma encarnação de Jesus Cristo.

Seu retorno está ligado à escatologia cristã, o estudo sobre o fim dos tempos. É fácil entender como o filho unigênito de Deus está cada vez melhor posicionado na guerra cultural no Ocidente. Não apenas os líderes das duas maiores populações do hemisfério foram eleitos com votos evangélicos e forte discurso religioso à direita (Trump e Bolsonaro), mas também na esquerda há o apelo ao retorno de líderes messiânicos, e o apocalipse climático ganha contornos de profecia apocalíptica. Há dez anos seria difícil prever tal fenômeno, mas Jesus voltou em 2020. E nada indica que abandonará o centro do palco – do templo – tão cedo.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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