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"Nacionalismo de Bolsonaro é risco enorme para o Brasil"

26 de agosto de 2019

Em entrevista à DW Brasil, especialista em relações internacionais afirma que postura do presidente em relação à Amazônia remete à Era Vargas e à ditadura militar e ameaça o acordo UE-Mercosul, que seria útil ao país.

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O presidente Jair Bolsonaro
"A crise com os europeus começa do lado brasileiro, com a postura de Bolsonaro sobre o clima", diz Guilherme CasarõesFoto: Reuters/A. Machado

A atitude defensiva do presidente Jair Bolsonaro em relação a países europeus quando se trata do desmatamento da Amazônia não é um fato novo na história do Brasil.

Segundo o professor de Relações Internacionais da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) Guilherme Casarões, a estratégia faz parte de um nacionalismo criado ao longo do século 20, com influências decisivas da Era Vargas e dos governos militares.

"Essa questão da internacionalização chegou a outro nível durante a ditadura militar, envolvida na filosofia 'ocupar para não entregar'", diz ele em entrevista à DW Brasil.

O G7 anunciou nesta segunda-feira (26/08) a liberação de 20 milhões de dólares para ajudar a combater o fogo e reparar os danos resultantes das últimas queimadas, mas sempre respeitando a soberania nacional dos países da Amazônia. Para Casarões, a reação europeia é resultado dos erros que o Brasil tem cometido na pauta ambiental.

"[Bolsonaro] deu sinais de que não estava comprometido com a temática ambiental desde o começo do governo, com a ambiguidade em relação ao Acordo de Paris. Depois, o chanceler nega reiteradas vezes o aquecimento global. Essa crise com os países europeus começa do lado brasileiro. Não houve nenhuma posição por parte de Alemanha, França, no sentido de condenar o Brasil por qualquer coisa antes de o governo começar a ter certas atitudes de maneira sistemática", avalia.

DW Brasil: Existe, de fato, uma cobiça internacional em relação à Amazônia?

Guilherme Casarões: Sim, é um dado histórico. Desde o século 17 existem movimentações estratégicas pela Amazônia, por razões diferentes ao longo do tempo. No começo tinha a ver com a questão territorial. Os Estados europeus tinham necessidade de expansão, e a América do Sul foi muito cobiçada. O Brasil foi invadido pela Holanda, França, na região do Nordeste.

Ao longo do tempo, isso foi tomando outros contornos. Os Estados Unidos se interessaram pela Amazônia por uma questão demográfica. Esperava-se, no século 19, tornar a Amazônia uma espécie de extensão do estado escravagista. Houve o ciclo da borracha também, que gerou interesse inclusive de Henry Ford, magnata da indústria automobilística.

A Amazônia, seja pelo valor estratégico e territorial, seja pelos seus recursos econômicos, sempre despertou cobiça internacional. O que acho que existe de conspiração nessa história é que nem sempre a cobiça internacional necessariamente se materializa em um desejo de invadir a Amazônia. Mesmo o tenente da marinha [dos EUA] Matthew Maury, em 1853, que defendeu essa invasão em textos publicados, nunca fez com que isso se materializasse em governo nenhum.

Nos séculos 20 e 21, falar em invadir e internacionalizar à força a Amazônia não faz sentido, servindo apenas para povoar a mente de nacionalistas brasileiros que têm medo de a Amazônia ser roubada.

O argumento de ingerência externa tem sido utilizado por Bolsonaro e seus ministros nos últimos dias. Esse é um exemplo de nacionalismo que Bolsonaro herdou dos militares?

Eu diria que isso é fruto do século 20, mais do que da ditadura em si. Existem dois momentos importantes: o primeiro é a Era Vargas. Getúlio talvez tenha sido o primeiro a direcionar esforços do Estado brasileiro para colonizar a Amazônia. Usou a palavra "colonizar" porque eles entendiam dessa forma mesmo: a Amazônia como lugar inóspito, selvagem, que precisava ser colonizado dentro dos parâmetros de civilização do Brasil. Vargas denominou esse movimento de "marcha para o oeste".

Merkel e Macron sobre Amazônia: "Questão global"

Houve outra tentativa, no começo do governo Dutra, em 1947, com a criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA), dentro das Nações Unidas, para lidar com a Amazônia. Isso foi duramente rechaçado no Brasil, já imerso em um nacionalismo forte. Quando a proposta de criação do instituto ligado à ONU foi colocada em votação no Congresso, o ex-presidente da República Artur Bernardes, à época deputado federal por Minas Gerais, fez um espetáculo para dizer que aquilo não deveria ser aprovado. Ele foi o precursor dessas denúncias de uma suposta internacionalização da Amazônia. Os militares solidificaram, por mais tempo, esse sentimento nacionalista que já existia. Mas é bom lembrar que isso opera tanto na direita, quanto na esquerda.

É correto dizer que essa questão da internacionalização chegou a outro nível durante a ditadura militar, envolvida na filosofia "ocupar para não entregar", com a ideia de construção de estradas, da Transamazônica. Foi também nesse momento que surgiu um discurso mais específico de preservar o meio ambiente e usar isso como pretexto para ferir os interesses soberanos do Brasil.

A primeira reunião da ONU para lidar com esse tema foi em Estocolmo em 1972. Uma pauta ambiental começa a se organizar de forma mais clara, e os militares, que sempre ficaram na defensiva, começam a observar a movimentação das grandes potências mundiais utilizando esse tema para exercer o que eles consideravam uma ingerência sobre o Brasil. 

Como os governos brasileiros relacionam a Amazônia e o tema da soberania nacional?

Não existe dúvida de que a Amazônia é brasileira. Nenhum governo seria capaz de dizer qualquer coisa no sentido contrário. O que ocorre é que o Brasil vai ter uma postura que muda de figura com relação à temática ambiental. Durante a ditadura militar, não se discutia o meio ambiente porque havia uma onda na Europa de pessoas que acreditavam que o Brasil não poderia encostar na Floresta Amazônica porque isso seria um atentado contra o meio ambiente. Os militares foram contra essa interferência.

Nos anos 80, com a volta da democracia, essa posição começou a mudar, porque a pressão exterior aumentou. Foi uma década em que a temática ambiental avançou muito na agenda da ONU, também com o surgimento do termo "desenvolvimento sustentável". A partir disso, começou uma pressão sobre o Brasil para que ele seguisse a cartilha ambiental e não colocasse a Amazônia em risco.

Em 1988, houve o assassinato do Chico Mendes, e a imprensa internacional começou a ficar atenta. O Brasil saiu da postura defensiva que manteve durante a ditadura militar para uma posição mais aberta, como um defensor das questões ambientais. Mas o país não tinha esse retrospecto. Aí o Brasil sediou a Rio-92, um evento tão importante para a temática ambiental que nos colocou como representante engajado.

O presidente da França, Emmanuel Macron, disse que a Amazônia é um "bem comum".

Eu não entendo como bem comum. A expressão "bem público global" é usada para questões específicas. O clima da terra é um bem público global. A Amazônia, não. Ela está dentro do território de um país. O problema é que, a partir do momento em que um país controla uma determinada dimensão desse bem público – no caso, o clima da terra depende diretamente da emissão de CO2 que está distribuído de maneira irregular pelos países do mundo –, os países se sentem na posição de dar lições de moral uns nos outros. O que, obviamente, tem impactos negativos.

Entendo a posição de Bolsonaro. Mas entendo também que o fato de a Alemanha e a França terem dito qualquer coisa sobre a Amazônia nos últimos tempos tem muito a ver com a postura do governo brasileiro. Todas as vezes que falaram com o Lula sobre a privatização da Amazônia, ele respondeu como Bolsonaro. O problema é que Bolsonaro vem fazendo isso com uma truculência inédita.

Ele deu sinais de que não estava comprometido com a temática ambiental desde o começo do governo, com a ambiguidade em relação ao Acordo de Paris. Depois, o chanceler nega reiteradas vezes o aquecimento global.

O que deflagrou essa situação que nós vivemos hoje é o fato de que desde a campanha já havia indícios de que Bolsonaro não tinha interesse em dar sequência a uma pauta de respeito ao meio ambiente, já que as forças políticas que o elegeram estão ligadas a um outro conjunto de interesses, como o agronegócio, grileiros, madeireiros. A demissão do diretor do Inpe foi muito simbólica.

Essa crise com os países europeus começa do lado brasileiro. Não houve nenhuma posição por parte de Alemanha, França, no sentido de condenar o Brasil por qualquer coisa antes de o governo começar a ter certas atitudes de maneira sistemática. Muito me espantou que toda essa história tenha se desenrolado tendo como pano de fundo o acordo entre Mercosul e União Europeia.

Justamente sobre o acordo UE-Mercosul, quais podem ser os impactos daqui para a frente?

Acredito que o governo brasileiro tenha decidido polarizar a discussão da Amazônia. A situação tomou uma dimensão tão grande que eu realmente acho que Bolsonaro está abandonando coisas que poderiam ser úteis para o governo, como esse acordo, para fazer um jogo nacionalista rasteiro que significa um risco enorme para o Brasil.

A França, que não tinha motivos para gostar do acordo porque prejudica os interesses de setores econômicos protegidos do país, como os produtores de carne, vai usar como pretexto as atitudes de Bolsonaro para protelar esse acordo o máximo que ela puder. Se um país grande e influente como a França jogar contra, é bem provável que o acordo não surta nenhum tipo de efeito em um primeiro momento.

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