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Liberdade de expressão não é valor absoluto, diz Leonardo Boff

Geraldo Hoffmann21 de abril de 2006

Em entrevista exclusiva à DW-WORLD, o teólogo Leonardo Boff critica sátiras sobre símbolos religiosos. Ele avalia também o diálogo intercultural entre o Ocidente e o mundo muçulmano e o ecumenismo pregado por Bento 16.

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Boff pede diálogo sério entre Ocidente e mundo muçulmanoFoto: Leonardo Boff

O teólogo Leonardo Boff, que foi punido pelo Vaticano em 1985 por causa da Teologia da Libertação, negou-se esta semana a fazer um balanço do primeiro ano de pontificado de Bento 16. "É muito cedo para avaliar o papa que me parece de transição", disse apenas. Durante uma conferência sobre "Encontro e Aliança de Civilizações", em Granada, na Espanha, ele falou com a DW-WORLD sobre sátiras envolvendo símbolos religiosos e o diálogo intercultural entre o Ocidente e o mundo muçulmano.

DW-WORLD: Na Alemanha, a emissora MTV pretende transmitir em breve o desenho animado Popetown, uma sátira sobre o papa e o Vaticano. O que o senhor acha desse tipo de sátira sobre religião ou símbolos religiosos?

Leonardo Boff: Nós vivemos num mundo cheio de conflitos e buscamos elementos comuns que permitam à humanidade viver na casa comum que é o planeta Terra. Todos os valores e práticas que apontam para esta meta devem ser incentivados. Tudo o que divide e ridiculariza fontes de valores, que são as religiões, vai a contracorrente dessa busca universal. Existe na sociedade o lugar para a sátira e o humor, mas tudo tem o seu limite, especialmente quando essa sátira afeta valores ou figuras que encarnam o sagrado, como Maomé, o papa ou outro líder religioso.

Qual é o limite tolerável para a liberdade de expressão?

A liberdade de expressão não é um valor absoluto. Ela se situa dentro dos valores da sociedade e tem os seus limites. Considero algo de muito mau gosto fazer sátira, no caso da MTV, sobre o papa e o Vaticano. Primeiro, porque ofende a fé de milhões de católicos; segundo, porque ofende dimensões do sagrado ligado a essas pessoas e instituições. Outra coisa seria fazer a crítica do abuso de poder, do excesso de centralização da Igreja, mas numa linguagem adequada à natureza da religião, que sempre impõe respeito, tolerância e um senso de limite.

Pode ocorrer uma onda de sátiras sobre o Cristianismo e outras religiões, depois da repercussão que teve a briga sobre as caricaturas de Maomé?

A lei fundamental que rege as sociedades atuais é prescrita pelo mercado. Tudo vira mercadoria, do sexo à Santíssima Trindade. Essa mercantilização de todas as instâncias da sociedade pode levar a que se faça negócios em cima de sátiras e expressões que ridicularizam as autoridades. A sociedade tem que fazer uma autocrítica e perguntar quais são os limites. Quando estes são rompidos, estamos próximos do crime e da ruptura da coesão social. A vida e valores que dão sentido à vida e mobilizam milhões de pessoas não podem se transformar em objeto de comercialização. Acho que fenômenos como esses mostram o nível de decadência que a cultura ocidental hoje está atingindo.

Deveria haver censura ou autocensura nesse caso?

Não se trata de censura ou autocensura e, sim, de uma legislação onde uma sociedade define para si o que é permitido e o que não é permitido. Por exemplo, é claro hoje que não podemos fazer nenhuma propaganda nazista ou que incentive o terrorismo, a discriminação dos negros ou dos portadores de HIV. Tudo isso são ações criminosas, que a legislação pune, e com isso protege a sociedade. É importante que haja sempre a autocrítica, mas que a censura se faça no interior da sociedade.

Durante a polêmica das charges de Maomé, o senhor disse que a fé do Islã questiona o Ocidente. Em que sentido?

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Protestos contra a Europa durante a brigaFoto: picture-alliance/dpa/dpaweb

O Ocidente entrou num processo acelerado de secularização. Como já disse Nietzsche, Deus morreu; ele não funda mais valores nem cria coesão social. A secularização não eliminou a religião, o sagrado, mas o entregou à subjetividade e à individualidade. Nessa concepção, a liberdade religiosa é a liberdade de não ter religião ou fé.

Já a cultura muçulmana diz que o principal nos seres humanos é que eles se entendam como irmãos e irmãs na grande comunidade humana, fundada na crença de que deus – Alá – é o criador do céu e da terra e nós somos todos irmãos. E que não é possível uma sociedade fraterna sem esse princípio. Quando o Ocidente critica essa referência – no caso Maomé – atinge o coração da compreensão social da cultura muçulmana e ofende um bilhão de pessoas.

Assim como seria terrível para nós, se os muçulmanos dissessem que a dignidade humana não tem valor, que os direitos humanos são uma invenção ocidental burguesa, que as liberdades não têm validade. Tudo isso seria uma agressão às convicções mais fundamentais da cultura ocidental. Ora, nós estamos fazendo algo semelhante com a cultura muçulmana. Daí a necessidade de aceitar e respeitar as diferenças e tentar entender as razões por que os muçulmanos pensam e organizam suas sociedades dessa forma.

Leia o que Leonardo Boff pensa sobre o diálogo Ocidente-Oriente e o ecumenismo pregado por Bento 16.

O senhor vê uma tentativa de diálogo sério entre o Ocidente e o mundo muçulmano ou só se usa a palavra "diálogo" como um extintor de incêndio quando há crises?

A tradição ocidental é de guerra contra os muçulmanos. Os cristãos fizeram cruzadas contra os muçulmanos, que sempre representaram uma ameaça para os europeus. E houve sempre uma disputa de hegemonia cultural e militar entre o mundo muçulmano e o mundo cristão. A tônica básica não é o diálogo, e sim a guerra e a desmoralização. Precisamos romper com essa tradição, senão podemos ir ao encontro de um conflito generalizado. Um diálogo sério com os muçulmanos tem de buscar pontos em comum e não ressaltar pontos de diferença entre a cultura muçulmana e a cultura ocidental.

Essa também é a chave para resolver o problema da falta de integração de imigrantes muçulmanos na Europa?

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Europeus têm dificuldade de lidar com o diferente, diz BoffFoto: AP

O Ocidente, especialmente a Europa, sempre teve muita dificuldade de conviver com o diferente. É uma cultura que acentua tão fortemente a identidade, que exclui as diferenças. E isso foi uma tragédia para o mundo, porque as potências coloniais destruíram as culturas indígenas na América Latina, escravizaram os negros da África, submeteram o Oriente, a China, aos seus interesses econômicos. A Europa, o Ocidente, nunca conseguiu admitir o outro na sua alteridade. Ou o agregou, submetendo-o, ou o incorporou ou o destruiu.

Só que hoje há uma diferença: o outro está dentro de seu território. São milhões de turcos, árabes, imigrantes do Magreb, da África, que estão na Espanha, na Alemanha, na Bélgica, na Suécia. Então, o diálogo tem de acontecer no próprio território nacional. E este é o teste para ver o quanto o estômago europeu agüenta de diferença, de sociedades multiculturais e multirreligiosas, pluralistas, não apenas de homogeneidade branca, cristã. O grande desafio para a Europa é se abrir e mostrar que sua cultura não é morta, fossilizada.

A América Latina – que produziu a Teologia da Libertação – tem exemplos de diálogo inter-religioso e intercultural, aplicáveis a outras regiões do mundo?

A Teologia da Libertação surgiu da tentativa de ouvir o grito dos oprimidos. Primeiro, foram os pobres, daí os indígenas, os negros e as mulheres, vítimas do patriarcalismo. A partir disso, surgiu um grande diálogo do Cristianismo – das Igrejas luterana, católica e outras – com as religiões de origem africana ou indígena, não ocidentais. E esse diálogo trouxe um grande enriquecimento, no sentido de descobrirmos os valores das tradições dos astecas, incas e maias, o valor de suas crenças como criadoras de uma coesão que permitiu que eles sobrevivessem à opressão de cinco séculos.

E isso poderia ser um exemplo para a Europa?

É um ensaio que fazemos na periferia, mas que pode influenciar os centros metropolitanos. Porque esses diálogos ocorrem sem conflitos, sem guerras ideológicas ou enfrentamentos de força com os negros e indígenas e, sim, com respeito mútuo. Um exemplo disso é o Brasil, uma sociedade multicultural, multirreligiosa, com muitas nacionalidades, e todos convivendo pacificamente. É um ensaio civilizatório bem-sucedido, que mostra que é possível fazer algo análogo em outras partes do mundo.

Ainda é possível acontecer "uma aliança entre civilizações" – tema da conferência em Granada – num mundo globalizado, marcado pela concorrência entre países, blocos econômicos e até culturas?

Devemos enfrentar os desafios colocados por Samuel Huntington, na sua interpretação da globalização – a hipótese do choque das civilizações. Essa tese pode e deve ser muito discutida, mas ela tem pontos verdadeiros. Por exemplo, não se pode negar que há um enfrentamento entre a cultura árabe-muçulmana e a cultura ocidental cristã. É possível, e não temos alternativa, senão sentarmos juntos e estabelecer regras mínimas, uma ética mínima de convivência.

O novo papa alemão tem reiterado em seu primeiro ano de pontificado o desejo de dialogar com outras religiões. Que chances o senhor vê para o ecumenismo sob Bento 16?

Dialog ist ein Anfang
Bento 16 conversa com líderes muçulmanosFoto: AP

O papa Bento 16 fez um gesto significativo, visitando uma mesquita muçulmana em Roma. Esse gesto foi para dizer: precisamos dialogar, porque o enfrentamento da cultura árabe-mulçumana com a cultura ocidental é muito forte e ela se revela numa forma aguda e perigosa no enfrentamento entre palestinos e israelenses, na guerra do Iraque, no confronto com o Irã. E é importante que o Cristianismo, que ainda é a religião hegemônica no mundo, tome a iniciativa e se busque o acerto entre as religiões como base para um acerto político. A paz religiosa deve servir de base para a paz política, para a paz mundial. Possivelmente este é o caminho certo. Creio que isso o papa Bento 16 entendeu e devemos apoiar essa iniciativa do macroecumenismo.