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Silêncio e mentiras: livro retrata vida de filhos dos funcionários da Stasi

14 de março de 2012

O trabalho dos funcionários da Stasi marcava o cotidiano de suas famílias, e as crianças eram as que mais sofriam com a obrigação de manter segredo em meio a um clima de desconfiança e controle.

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Foto: picture-alliance/dpa

"Escudo e espada do partido" era como a polícia política da então Alemanha Oriental (RDA), de regime comunista, se autointitulava. Fundada em 1950 nos moldes da polícia secreta soviética, a Tcheka, a Stasi foi desde seu início um aparelho repressor contra supostos inimigos do Estado e do partido dominante do país, o SED.

Os funcionários da organização compunham um grupo fechado dentro da sociedade da RDA: viviam em bairros próprios, dispunham de privilégios como salários mais altos do que a média, frequentavam lojas exclusivas, médicos, clínicas e colônias de férias especiais. Até na concessão do direito de obter um carro eles eram privilegiados.

Sua função era observar, controlar e incomodar. Mesmo assim, eles próprios eram constantemente vigiados. A fim de escrever um livro, a jornalista Ruth Hoffmann entrevistou filhos de funcinários da Stasi e constatou o quanto eles sofriam naquele ambiente e como esse passado marca suas vidas até hoje.

Deutsche Welle: Dos funcionários regulares da Stasi era esperada uma lealdade absoluta. O que isso significava para as famílias, especialmente para as crianças no dia a dia?

Ruth Hoffmann: Para as crianças isso significava que elas eram obrigadas, sem ser consultadas, a respeitar essa lealdade absoluta, pois tudo o que elas viessem a fazer de errado poderia ter consequências para seus pais. Elas tinham que funcionar em concomitância com seus pais e com o sistema. Concretamente, isso significava, por exemplo, que elas eram obrigadas a dizer para os outros: 'Meu pai trabalha no Ministério do Interior'. Uma mentira sob comando, sobre a qual elas muitas vezes nem sabiam se tratar de uma mentira, já que o trabalho do pai em casa era um tabu e ninguém falava sobre isso. Ou seja, segredos e mentiras tanto fora quanto dentro de casa.

O que significava isso na escola? Os professores provavelmente sabiam da lenda em torno desse local de trabalho.

Acredito que o código fosse conhecido. Afinal, não era desonroso trabalhar para a Stasi. Tratava-se de uma organização muito importante para o Estado. E os professores também estavam de alguma forma a serviço do Estado.

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Ruth Hoffmann, autora do livro sobre os filhos dos funcionários da StasiFoto: Odile Hain

Os pais viviam num sistema de comando e obediência. Eles passavam isso para os filhos?

Na maioria dos casos, era assim. A maioria dos meus entrevistados relatou que em casa havia regras para tudo. E eles eram naturalmente forçados a cumprir as obrigações sociais, entrando para as organizações infantis e juvenis da RDA e mais tarde possivelmente para o partido. Para os funcionários das Stasi, era importante manter a família na linha, pois não havia diferenciação entre sua vida privada e profissional. Eles eram completamente rastreados por seus superiores. A seleção dos funcionários já era feita de maneira absolutamente detalhada, após pesquisas preliminares sobre o ambiente em que moravam, amigos, cônjuges e comportamento nas horas de lazer. E quando assumiam o posto de funcionários, isso continuava sendo constantemente fiscalizado, inclusive no que dizia respeito a suas famílias. Verificava-se, por exemplo, se a mulher de um funcionário não mantinha mesmo contato com aquela tia de Munique (na Alemanha Ocidental).

Nestas condições, a família ainda podia ser um espaço de proteção para as crianças?

As crianças tinham, mesmo em casa, a impressão de estarem pisando em ovos. Isso era passado para elas pelos pais no dia a dia.

Entre os depoimentos que compõem seu livro, há um em que o envolvido reclama o "espírito corporativo" que se sobrepunha até mesmo à própria família. Em alguns casos, pais chegaram a denunciar seus próprios filhos.

Encontrei muitos casos e documentos, nos quais os pais eram chamados por seus superiores para justificar, por exemplo, por que seus filhos mantinham envolvimento com a cena punk ou com movimentos pacifistas. E alguns, no afã da obediência, chegavam ao ponto de denunciar seus próprios filhos, avisando as autoridades.

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Capa do livro 'Filhos da Stasi'Foto: Ullstein

Tenho dois casos no livro, nos quais os pais denunciavam regularmente seus filhos. Stefan Herbrich (nome fictício), por exemplo, criou na fábrica onde trabalhava um jornal de parede um pouco crítico. Algo sem maiores ambições oposicionistas, nada muito dramático, na verdade. Mas acabou na prisão por causa disso. Seu pai declarou então oficialmente: 'Este não é mais meu filho, não tenho mais contato com ele'. E na documentação é perceptível como a Stasi fez pressão para que esta promessa fosse cumprida, tendo também controlado o comportamento do pai dali por diante.

Ao ler seu livro, me perguntei: a Stasi era, na verdade, um local de atração para pessoas emocionalmente deficientes? Ou os funcionários ficavam assim lá dentro? Em outras palavras: uma determinada estrutura de personalidade era pré-requisito para trabalhar ali?

Não arrisco emitir um julgamento a esse respeito. Mas também me perguntei: o trabalho dos pais os transformava naquilo que eram ou era o contrário? Conversei, por isso, com o professor Harald J. Freyberger, da Universidade de Greifswald, que na condição de psiquiatra pesquisou sobre o tema. Ele tratou de filhos de funcionários da Stasi e também de alguns ex-funcionários diretamente. E ele diz que sim, que para pertencer à organização era necessário ter uma determinada estrutura de personalidade. E para poder fazer esse trabalho a pessoa tinha que ter uma certa disposição também.

Mesmo assim, não havia, obviamente, uma família típica da Stasi, como você mesma acentua. E nem todos os funcionários da Stasi viviam na RDA. Pierre Guillaume, por exemplo, filho de Günther Guillaume, o espião da Casa Civil do governo Willy Brandt, cresceu em Bonn, numa atmosfera muito conservadora. Quando seus pais foram desmascarados – ambos, neste caso, trabalhavam para a Stasi –, o mundo caiu para ele. A maioria dessas crianças teve que enfrentar uma enorme decepção, porque seus pais não eram aquilo que eles pensavam que fossem. Digo propositalmente "pais", e não "mães", porque os funcionários integrais da Stasi eram geralmente homens. Essas pessoas puderam, depois da queda do Muro, pelo menos falar sobre o assunto com seus pais?

Correto, quase 84% dos funcionários da Stasi eram homens. As poucas mulheres que lá trabalhavam eram principalmente faxineiras ou secretárias, ou seja, desempenhavam um papel insignificante.

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Arquivos da Stasi, no bairro Lichtenberg, em BerlimFoto: picture-alliance/Berliner_Kurier

Quanto a falar sobre o assunto depois da queda do Muro: não, eles não puderam falar com seus pais, que se negaram unanimemente a conversar! Acredito que isso seja de fato o que mais dói, a perpetuação desse silêncio, mesmo quando ele deixou de ser necessário. Não havia, depois da queda do Muro, mais nenhuma razão para manter nada em sigilo. E, de acordo com as minhas pesquisas, as "crianças", que já tinham todas se tornado adultos, não abordaram seus pais com uma postura de cobrança, querendo que eles se justificassem. Eles só queriam respostas às suas perguntas, queriam apenas informações.

Esta é a razão pela qual um livro com o seu só pôde ser lançado agora, mais de 20 anos depois da queda do Muro? Foi necessário um tempo para que essas "crianças" se dessem conta do que, de fato, se passou?

Sim, acho que essas coisas precisam de seu tempo. Foi realmente difícil escrever esse livro. Foi difícil encontrar interlocutores, porque se trata de coisas muito pessoais. E não importa que tipo de relação se tenha com os próprios pais, eles continuam sendo os pais.

Entrevista: Gabriela Schaaf (sv)
Revisão: Francis França