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Mais Médicos, melhor receita?

Clarissa Neher de Lagarto
8 de julho de 2018

Há cinco anos, Brasil iniciava programa para importar profissionais de saúde, e diagnóstico ainda divide opiniões. Uma pequena cidade no interior de Sergipe, que mudou com a chegada de cubanos, ajuda a entender por quê.

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A médica cubana Taimara Gomes chegou a Lagarto em 2013
A médica cubana Taimara Gomes chegou a Lagarto em 2013Foto: DW/C. Neher

Quando chegou a Lagarto, no interior de Sergipe, no fim de 2013, Taimara Machin Gomes se deparou com condições de trabalho precárias. Enviada para uma unidade básica de saúde, cujo chão nem piso tinha e com ratos, a médica cubana acompanhou a transformação que o programa Mais Médicos promoveu na comunidade onde ela atua.

A antiga unidade de saúde de madeira no povoado Colônia Treze deu espaço a um posto de alvenaria simples, mas com estrutura básica para atender os pacientes. A transferência para o espaço novo já era planejada, porém, a médica acredita que sua chegada ao local apressou o processo.

Gomes reconhece que, às vezes, faltam remédios no posto, mas isso, afirma, não chega a prejudicar a assistência que presta aos pacientes. Para ela, o grande problema ainda é a escassez de médicos na unidade.

"Fico sobrecarregada de vez em quando, mas temos que atender todo mundo", diz a cubana que chegou ao país poucos meses após o lançamento do Mais Médicos e que renovou, no fim dos primeiros três anos, o contrato para a permanência no programa até 2019.

A mudança impulsionada na unidade com a chegada de Gomes, que já havia atuado numa missão cubana na Venezuela por quatro anos antes de vir ao Brasil, também foi sentida pelos pacientes, que não precisam mais passar a noite na fila para tentar conseguir marcar uma consulta, como acontecia quando não havia um médico fixo no posto. 

Lançado em julho de 2013 pelo governo de Dilma Rousseff, uma das principais metas do Mais Médicos era ampliar o acesso à saúde levando médicos a regiões onde havia escassez de profissionais. As vagas que não fossem ocupadas por brasileiros seriam preenchidas por médicos de outros países, principalmente cubanos. O Ministério da Saúde estimava que faltavam 54 mil médicos no país.

Na época, Lagarto, com pouco mais de 100 mil habitantes, foi uma das cidades consideradas prioritárias pelo ministério para receber médicos do programa. A cidade recebeu dez profissionais de Cuba para atuar na atenção básica.

Além de consultas, eles trabalham ainda com a prevenção e controle de doenças junto à comunidade, organizando grupos educativos para orientações sobre doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, e visitando pacientes que não têm condições de ir até o posto de saúde.

Cinco anos depois, Lagarto continua com dez médicos do programa, sendo nove cubanos e um brasileiro. "Nossas equipes de saúde da família funcionam melhor com os cubanos do que com os brasileiros, devido ao cumprimento da carga horária. Temos uma dificuldade com os médicos brasileiros com relação à questão de cumprimento de carga horária", afirma o secretário municipal de Saúde de Lagarto, Cleverton Oliveira.

O município conta atualmente com 28 equipes de saúde da família, das quais apenas 23 possuem médicos – entres eles, dez são os profissionais do programa federal. Segundo Oliveira, há dificuldades de encontrar médicos para preencher essas vagas. Os brasileiros preferem atuar em capitais e regiões metropolitanas, além de considerar o salário oferecido pela prefeitura, cerca de 6 mil reais por 40 horas semanais, relativamente baixo.

Experiência e salário

Dos cubanos que decidiram vir ao Brasil, a vontade de conhecer o país e a experiência profissional estão entre os principais motivos que os levaram a se inscrever no programa.

"As doenças crônicas são as mesmas, mas as infecciosas mudam muito de um país para o outro. Aqui estou vendo doenças que não via há anos, como hanseníase, que é comum na região, ou sífilis congênita. Há muitos casos de esquistossomose, que eu não conhecia. Profissionalmente, sou um pouco melhor do que antes de chegar ao Brasil", afirma Leonel Peraza, de 60 anos, que trabalha em Lagarto há um ano e meio e já atuou em missões cubanas em Cabo Verde e na Venezuela.

Além da experiência, o salário recebido é um forte incentivo para a inscrição de cubanos no Mais Médicos, apesar do controverso modelo de cooperação assinado entre Brasil, Cuba e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Pela parceria, o pagamento dos profissionais é realizado ao governo cubano, que transfere parte do valor aos médicos. Atualmente, eles recebem quase 3 mil reais. A bolsa paga por Brasília aos outros profissionais do programa é de cerca de 11,8 mil reais.

"Optei por vir para o Brasil devido à experiência, mas a questão financeira pesou bastante", conta Danieyis Rivadeneira Pèrez, de 27 anos, que chegou a Lagarto há 18 meses.

Os médicos do programa recebem ainda uma ajuda de custo para moradia e despesas básicas, pagas pela prefeitura, e os cubanos, uma passagem anual de ida e volta para Cuba, prevista no contrato assinado com Havana.

O modelo de cooperação foi um dos principais alvos de críticas no lançamento do programa. A Associação Médica Brasileira (AMB) chegou a apresentar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), alegando violações de leis trabalhistas. Em novembro de 2017, a corte encerrou a batalha judicial e validou as regras do Mais Médicos.

"Pessoalmente gostaria de receber mais, é claro, mas não vim enganado. Pelas minhas necessidades e expectativas, gostaria de receber 5 mil reais, porém, sempre soube que seria assim. A realidade brasileira mudou bastante nos últimos anos, com aumento da inflação e nos preços dos produtos. Isso deveria ser analisado", opina Peraza.

Críticas e resultados

Quando foi lançado, em 2013, o programa foi alvo de duras críticas da associações da categoria, que refutavam o argumento do governo sobre a falta de médicos no país. Para eles, a carência de mínimas condições de trabalho era o que evitava a ida de profissionais para o interior.

Além das críticas em relação à cooperação assinada com Cuba, a atuação de médicos estrangeiros sem a revalidação do diploma, como estabeleceu o decreto do programa, e a não exigência de conhecimentos elevados do idioma eram vistos como um problema.

A AMB mantém as críticas ao programa, que considera ineficaz para solucionar a fixação de profissionais no interior do país. "Um médico sem condições de trabalho se vê reduzido à condição de testemunha privilegiada e absolutamente angustiada do sofrimento humano. Infelizmente não dá para tratar as pessoas apenas com conversa, respeito e cidadania", opina Lincoln Ferreira, presidente da associação. 

O Conselho Federal de Medicina também continua com uma posição crítica em relação ao programa, mas reconhece que a presença destes profissionais melhorou o acesso à saúde para uma parcela da população.

"O Mais Médicos é uma solução temporária. Para solucionar a fixação de médicos em regiões remotas, precisamos ter uma carreira de Estado, que permita ao médico evoluir de uma cidade para outra, como as carreiras de juiz, promotor e delegado", acrescenta Emmanuel Fortes, terceiro vice-presidente do CFM.

Apesar das críticas, o programa tem apresentado resultados. Entre os destaques estão o aumento da cobertura de atenção básica de 77,9% para 86,3%, entre 2012 e 2015, em mais de mil municípios que aderiram à iniciativa; neste mesmo período foi observado um crescimento de 33% no número de consultas em programas da saúde da família contra 15% registrado nas cidades que não participam do Mais Médicos; e redução de internações evitáveis de 44,9% para 41,2%.

"O resultado mais significativo do Mais Médicos foi levar acesso à saúde para a população, especialmente em populações vivendo em situação de vulnerabilidade. Isso é outorgar o direito à saúde previsto na Constituição brasileira", destaca Joaquín Molina, representante da Opas no Brasil.

Para Maria Helena Machado, coordenadora da pesquisa de avaliação do programa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, um dos maiores impactos do Mais Médicos foi elevar o nível de cidadania de grande parte da população ao proporcionar a assistência médica. 

"O programa mostrou que é possível levar médicos para todos os lugares do país. Permitiu ainda que os profissionais brasileiros, principalmente os mais jovens, perdessem o medo de ir para o interior. Além disso, a chegada de médicos de 47 nacionalidades, com outros modos de atuar e outra formação, promoveu um debate sobre a formação de médicos no Brasil", diz Machado.

Futuro incerto

Em Lagarto, os médicos cubanos também atestam as melhorias que o programa trouxe à cidade. "O programa tem cumprido seu objetivo chegando às comunidades onde não havia assistência médica. Tanto que a população mais carente deseja nossa permanência na unidade de saúde", afirma Yumisleidys Milian Perez, de 31 anos, que chegou em 2016.

Peraza, por sua vez, diz que a presença do médico faz com que os municípios invistam nas unidades de saúde. Os pacientes também confirmam as melhorias ocasionadas com a chegada dos profissionais cubanos, principalmente, na marcação de consultas e redução do tempo de espera para conseguir atendimento. 

Ao completar cinco anos, o futuro do programa é visto como incógnita entre pesquisadores que avaliam o Mais Médicos desde sua criação. Ao assumir o governo em 2016, Michel Temer mudou algumas de suas diretrizes. A principal mudança foi a substituição dos profissionais cubanos, que chegaram a preencher mais de 11,4 mil vagas do programa.

Atualmente, segundo o Ministério da Saúde, o programa conta com 16,7 mil médicos em atividade, sendo 8,5 mil cubanos, 4,9 mil brasileiros formados no Brasil e 3,2 mil graduados no exterior.

Segundo o secretário de Saúde de Lagarto, a extinção do Mais Médicos geraria grande insatisfação de todos os municípios que participam do programa, principalmente, os mais carentes.

Uma renovação do contrato por mais um período não é uma opção para Danieyis Rivadeneira Pèrez e Yumisleidys Milian Perez, que deixaram filhos de 3 anos e de 5 anos, respectivamente, em Cuba. O governo cubano autoriza a viagem de crianças com os pais médicos por apenas três meses, alegando que presença dos filhos pode atrapalhar o trabalho.

"Pretendo ficar apenas os três anos. Gostei daqui, conheci pessoas muito simpáticas, mas a saudade me faz retornar", ressalta Yumisleidys.

Para Peraza, que está na metade do contrato, ainda é cedo para pensar sobre uma renovação por mais três anos. Já Gomes, que casou com um brasileiro, permanecer por um terceiro período no país seria uma opção, mas ela não descarta voltar a Cuba em 2019.

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