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O advogado que fez história ao processar nazistas

Heike Mund
20 de novembro de 2020

Hoje com 100 anos, Ben Ferencz obteve provas das atrocidades cometidas nos campos de concentração, atuou como o mais jovem procurador dos julgamentos de Nurembergue e ainda ajudou a fundar o tribunal de Haia.

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Benjamin Ferencz
Foto: Robin Utrecht/picture alliance

Benjamin Ferencz, que completou 100 anos em março, continua sendo acima de tudo um otimista. Embora ele tenha testemunhado atrocidades quando atuou como soldado a serviço dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, reunido provas dos crimes de guerra nazistas após o fim do conflito, e em seguida processado nazistas nos julgamentos de Nurembergue, sua visão positiva da vida segue firme.

De nada adianta se afogar em um rio de lágrimas, afirma Ferencz na introdução de um livro sobre ele, prestes a ser lançado. Ele diz que, se você chorar por dentro, é melhor rir por fora. A obra, intitulada Parting words: 9 lessons for a remarkable life (Palavras de despedida: 9 lições para uma vida marcante, em tradução livre), será publicada em inglês em 31 de dezembro de 2020.

Foi graças ao trabalho investigativo de Ferencz que os promotores dos julgamentos de Nurembergue, iniciados em 20 de novembro de 1945, puderam apresentar documentos comprovando os crimes dos nazistas. As provas foram utilizadas contra integrantes do círculo íntimo de Adolf Hitler, como Hermann Göring, Rudolf Hess, Baldur von Schirach, entre outros criminosos de guerra.

"Sem Ferencz, este julgamento espetacular poderia não ter acontecido", declarou à DW o historiador Axel Fischer, um especialista nos julgamentos de Nurembergue.

Ben Ferencz, aos 27 anos
Ferencz dedicou a vida a fazer justiçaFoto: Benjamin Ferencz/Piper Verlag/dpa/picture alliance

Em combate na Europa

Ferencz cursou a Faculdade de Direito de Harvard graças a uma bolsa de estudos. Após a graduação, em 1943, ele entrou para o Exército dos Estados Unidos. A carreira militar começou sem nenhum glamour: um trabalho como datilógrafo em Camp David, no estado da Carolina do Norte. Naquela época, ele não estava familiarizado com o uso da máquina de escrever, mas tampouco sabia disparar uma arma. Também era dever dele limpar vasos sanitários, lavar a louça e esfregar o chão.

As coisas começaram a ficar sérias para Ferencz na primavera de 1944, quando a unidade de combate na qual ele atuava foi enviada ao Reino Unido para lutar na Segunda Guerra. Em 6 de junho de 1944, conhecido como o Dia D, ele e os colegas saltaram de uma lancha de desembarque rumo à praia de Omaha, no norte da costa da Normandia, na França. Era o início da invasão dos Aliados – e também do fim do domínio nazista.

Durante o avanço das tropas americanas, a unidade de Ferencz rompeu a linha de defesa ocidental dos nazistas, a chamada Linha Siegfried. Os soldados lutaram na linha de frente da Batalha das Ardenas e cruzaram o rio Reno pela ponte de Remagen na primavera de 1945. Mais tarde, Ferencz diria que sobreviveu à guerra por pura sorte.

Em junho de 1945, soldados americanos adentram linha de defesa ocidental dos nazistas
Em junho de 1945, soldados americanos adentraram linha de defesa ocidental dos nazistasFoto: picture-alliance/dpa

Após o conflito, o Exército lhe designou outra tarefa: obter provas dos crimes de guerra cometidos pelos nazistas. Valendo-se da sua formação em direito, Ferencz e sua equipe fizeram um pente-fino nos documentos encontrados na organização paramilitar SS (abreviação para "Schutzstaffel") e em outros escritórios nazistas. Também visitaram campos de concentração que haviam sido libertados pelo Exército americano. Em Buchenwald, Dachau, Mauthausen e outros desses campos, Ferencz encontrou provas cabais de que a máquina nazista de assassinatos em massa foi muito além do que ele poderia ter imaginado.

Primeiros nazistas são detidos

Em suas memórias, Ferencz relata como era importante conseguir provas como listas de prisioneiros, nomes dos administradores dos campos, bem como dos membros da SS envolvidos. Foi essa a base que ele e sua equipe usaram para emitir mandados de prisão. Depois de obter todas as provas possíveis em um campo, eles partiam para o próximo imediatamente.

Embora seja de família judia, Ferencz não estava interessado em vingança nem retaliação. Para ele, o que estava em jogo era a justiça.

Tribunal de Nurembergue completa 75 anos

Ele participou do primeiro julgamento de Nurembergue, contra os principais criminosos de guerra nazistas, apenas como espectador. Em seus diários, ele lembra que, no início do julgamento, os assentos estavam lotados, porém, à medida que a sessão avançava, o local foi ficando vazio porque os alemães logo perdiam o interesse.

Após dispensado do Exército com honras, Ferencz retornou aos Estados Unidos e começou a procurar emprego como advogado, mas não precisou fazer isso por muito tempo. Ele logo recebeu um telegrama do Pentágono convocando-o para um encontro com o general Telford Taylor, um prestigioso advogado que havia sido nomeado pelo então presidente Harry Truman para comandar os demais julgamentos de Nurembergue, aqueles que iriam recomeçar de onde o primeiro havia parado. Taylor imediatamente trouxe Ferencz para sua equipe.

Uma "mina de ouro" de provas

No documentário A man can make a difference (Um homem pode fazer a diferença, em tradução livre), lançado em 2015 pelo diretor Ullabritt Horn, Ferencz lembra que, primeiro, Taylor o encarregou de ir a Berlim e recolher provas dos monstruosos crimes nazistas. Os Estados Unidos achavam que o primeiro julgamento de Nurembergue, dos 22 principais nazistas, não havia conseguido explicar totalmente como crimes dessa magnitude podiam ter acontecido em um país civilizado como a Alemanha, segundo ele diz no filme.

A equipe de investigação dos Estados Unidos estava sediada em Berlim, uma capital devastada pela guerra. Naquele momento, a cidade já havia sido dividida em setores separados pelas quatro potências que ocuparam o território alemão: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Cada uma tinha seus próprios métodos de processo penal.

Ben Ferencz, aos 27 anos, dirige um veículo
Ferencz tinha apenas 27 anos quando se tornou procurador-chefe de um dos julgamentos de NurembergueFoto: Benjamin Ferencz/Piper Verlag/dpa/picture alliance

No entanto, Ferencz e sua equipe de 50 pessoas receberam sinal verde para reunir uma grande quantidade de provas e documentos incriminatórios produzidos pela vasta burocracia nazista. A sede da Gestapo – a polícia secreta da Alemanha Nazista – em Berlim se mostrou particularmente útil para isso, abrigando papéis com detalhes do que havia ocorrido, resultado da típica minuciosidade alemã. No documentário, Ferencz descreve o lugar como "uma mina de ouro", acrescentando que ele e sua equipe vasculharam sistematicamente todos os arquivos nazistas.

Procurador-chefe do "Processo Einsatzgruppen"

Na primavera de 1947, um integrante  da equipe se deparou com três pastas grossas nos arquivos do Ministério do Exterior com o título "Despachos de eventos da União Soviética – Relatórios da Frente Leste". Eram relatos de unidades especiais da SS disfarçadas sob o nome "Einsatzgruppen", termo usado para se referir aos esquadrões da morte móveis da SS. Mas, como lembra Ferencz, ninguém sabia disso naquela época.

Julgamento de Nurembergue, em 1945
Ferencz e seus colegas encontraram documentos que davam a dimensão da máquina de morte nazistaFoto: akg-images/picture alliance

Ferencz descobriu listas detalhadas de um programa assassino que a SS usou para matar centenas de milhares de judeus e de ciganos das etnias sinti e roma no Leste Europeu. Ele rapidamente percebeu a importância daquela descoberta.

Essas provas forneceram base legal para um dos maiores julgamentos de assassinatos da história: em 15 de setembro de 1947, Ferencz fez seu pronunciamento de abertura na sala 600 do Tribunal de Nurembergue. Aos 27 anos, ele era o procurador-chefe mais jovem envolvido com os 12 julgamentos de Nurembergue realizados após o primeiro. Os réus eram 24 homens do "SS Einsatzgruppen", representando um total de 3 mil membros.

No final, quatro das sentenças de morte do tribunal foram executadas. Muitos dos criminosos nazistas na Alemanha Oriental e Ocidental cumpriram penas de prisão curtas, e alguns foram libertados mais cedo. A Guerra Fria entre nações comunistas e as potências ocidentais havia começado, deixando os horrores da Segunda Guerra Mundial em segundo plano.

Benjamin Ferencz
Ferencz foi um dos responsáveis por criar o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na HolandaFoto: Everett Collection/picture-alliance

O embrião do Tribunal Penal Internacional

As experiências de Ferencz na Alemanha do pós-guerra renderam frutos. Mais adiante, como representante oficial da Conferência de Reivindicações Materiais Judaicas Contra a Alemanha, ele trabalhou incansavelmente para que se chegasse ao acordo de reparações entre Israel e a Alemanha Ocidental, assinado em Luxemburgo em 1952.

A persistência e experiência dele nos julgamentos de Nurembergue também levaram à fundação, em 2002, do Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, na Holanda. O TPI processa indivíduos por crimes de guerra – até mesmo chefes de Estado podem ser responsabilizados legalmente.

Em depoimento para o documentário de 2015, a procuradora-chefe do TPI, Fatou Bensouda, descreveu Ferencz como "um homem de convicção, um homem de princípios". "Para ele, isso não é só um trabalho, é uma paixão", acrescentou.

Em 2010, Ferencz foi agraciado com a Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha por se comprometer ao longo de uma vida inteira com o direito internacional.

No evento que celebra o 75º aniversário dos julgamentos de Nurembergue, marcado para esta sexta-feira (20/11), Ferencz fará um discurso por meio de uma mensagem de vídeo. Em sinal de respeito, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, vai se pronunciar depois dele.