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O alemão que desvendou o mistério da arara-azul-de-lear

6 de outubro de 2017

Região de origem da espécie permaneceu enigma por um século, até que Helmut Sick o resolvesse. Livro aborda história e legado do pesquisador responsável por uma das grandes descobertas da ornitologia.

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Brasilien Lear-Ara | Anodorhynchus leari
Araras na região do Raso da Catarina, na caatinga baianaFoto: Proje o Jardins da Arara de Lear/João Marcos Rosa

Descrita pela primeira vez em 1856, na Europa, com base em exemplares empalhados, a arara-azul-de-lear foi um enigma que intrigou pesquisadores durante quase um século. Apesar de aparecer em ilustrações e em coleções de animais de museus europeus, a ave nunca havia sido avistada por ornitólogos no Brasil, o que poderia indicar sua extinção.

Somente em 1978, o mistério da arara-azul-de-lear foi desvendado: através de uma expedição ao nordeste da Bahia do ornitólogo alemão naturalizado brasileiro Helmut Sick. O habitat da espécie, a caatinga baiana, foi uma das várias descobertas feitas por ele, considerado um dos maiores pesquisadores sobre aves do país.

"Além de descobrir espécies novas e fazer mapeamentos, ele alavancou a ornitologia no Museu Nacional, deixou discípulos importantes e publicou artigos e livros que são até hoje referência em termos de taxinomia de aves", afirma a bióloga e historiadora Magali Romero Sá, da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Estima-se que mais de mil exemplares vivam atualmente na região do Raso da Catarina, entre os municípios de Jeremoabo e Canudos
Estima-se que mais de mil exemplares vivam na região do Raso da Catarina, entre Jeremoabo e CanudosFoto: Proje o Jardins da Arara de Lear/João Marcos Rosa

A saga de Sick pelo Brasil teve início décadas antes da resolução deste enigma. Natural de Leipzig, o jovem mudou-se aos 23 anos para Berlim, onde estudou ornitologia com Erwin Stresemann. Com ele, passou, em 1938, a trabalhar como assistente no museu que atualmente é conhecido como o Museu de História Natural.

Em 1939, Sick foi convidado a participar de uma expedição ao Brasil, financiada pelo Serviço de Pesquisa do Terceiro Reich. No Brasil, a pesquisa foi apoiada pelo Museu Nacional e pela Fundação Oswaldo Cruz. A viagem coordenada por Adolf Schneider visava refazer a rota percorrida no Espírito Santo no século 19 pelo príncipe renano Maximiliam zu Wied-Neuwied.

A missão de Sick era recolher amostras de aves para o museu em Berlim e estudar o raro mutum-do-sudeste e o jacu-estalo. No Brasil, após três meses da viagem, Sick e Schneider acabaram se desentendendo. Ao abandonar a expedição, o ornitólogo recebeu apoio de Stresemann para permanecer no Brasil.

No Espírito Santo, Sick continuou com suas pesquisas sobre aves até ser preso, em 1942. Após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, por ser alemão, o ornitólogo foi acusado de ser um espião do regime nazista. Nem mesmo a prisão conseguiu afastá-lo da ciência. Durante os três anos que esteve detido em Ilha Grande, no Rio de Janeiro, estudou de sua cela pássaros da região e cupins.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ele foi solto e optou novamente por permanecer no Brasil. Em 1952, Sick se naturalizou brasileiro e foi, oito anos depois, contratado pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro. Durante suas expedições, descobriu, pelo menos, quatro novas espécies de aves brasileiras. O pesquisador escreveu obras de referência sobre o tema, como Ornitologia brasileira, uma introdução, publicado em 1985.

Brasilien Lear-Ara | Anodorhynchus leari
Descrita pela primeira vez em 1856, a arara-azul-de-lear foi um enigma durante quase um séculoFoto: Proje o Jardins da Arara de Lear/João Marcos Rosa

Luta pela preservação

Uma das maiores contribuições de Sick para a ornitologia foi a descoberta do habitat da arara-azul-de-lear, comprovando assim que a ave não havia sido extinta. As duas primeiras viagens de pesquisador ao nordeste para solucionar o maior enigma da ornitologia sul-americana terminaram sem resultados, somente na terceira expedição ele finalmente encontrou a espécie.

"A garra de Sick é o que mais me fascinou nesta história. Diante de todas as intempéries que surgiram, ele não desistiu da pesquisa", conta João Marcos Rosa, um dos autores do livro Jardins da Arara de Lear, lançado no final de setembro

Além de apresentar o habitat da ave, o livro conta a história de sua descoberta e mostra a luta para sua preservação. Entre as dificuldades para a localização da espécie estava a extensão do território brasileiro. No início, havia apenas a informação de que os exemplares levados para a Europa no século 19 foram embarcados no porto de Belém. Suspeitava-se, então, que a ave era da Amazônia.

Em 1978, Sick finalmente encontrou a espécie, na região do Raso da Catarina, na caatinga baiana. Após a descoberta, o ornitólogo contabilizou apenas 21 exemplares da ave. Ameaçada pelo tráfico de animais silvestres e pela degradação de seu habitat, o pássaro estava à beira da extinção.

"No momento em que Sick desvenda esse mistério, começa uma nova saga, que é a para salvar a espécie da extinção", destaca Gustavo Nolasco, coautor do livro Jardins da Arara de Lear.

Os esforços de pesquisadores e da população local para salvar a arara-azul-de-lear têm dado resultados. Estima-se que mais de mil exemplares vivam atualmente na região do Raso da Catarina, localizada entre os municípios de Jeremoabo e Canudos. No entanto, a espécie continua ameaçada pela degradação ambiental.

"A falta de alimento é a principal ameaça", afirma Aliomar Almeida, coordenador do projeto Jardins da Arara de Lear, que visa conscientizar a população local sobre a importância das palmeiras de licuri, cujo fruto é o principal alimento da arara, e estimula a geração de renda por meio de projetos sustentáveis.

A expedição de Sick que solucionou o enigma da arara-azul-de-lear foi a última grande realizada pelo ornitólogo. Ao descobrir o habitat da ave, ele contribuiu também para a sua salvação. Sick morreu em 1991 no Rio de Janeiro.