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Educação

O drama de quem depende de creches públicas

16 de agosto de 2019

Enquanto 70% das crianças de zero a três anos do país não têm vaga em creches públicas e pais enfrentam longas listas de espera, governo Bolsonaro reduziu drasticamente os repasses a municípios para educação infantil.

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Mão de mãe e criança
Plano Nacional de Educação tem como meta garantir acesso a creches e escolas infantis a 50% de todas as crianças até 2024Foto: picture-alliance/dpa/K.-J. Hildenbrand

Assim como o ensino superior, que teve parte de seu orçamento contingenciado, a educação infantil também teve seus recursos reduzidos no governo de Jair Bolsonaro. Entre janeiro e abril deste ano, os repasses federais para a construção de creches e pré-escolas municipais atingiram o menor valor para o período desde 2009.

A transferência de recursos federais para os municípios correspondeu a apenas 13% do valor repassado no mesmo período do ano passado: foram R$ 10,3 milhões nos primeiros quatro meses de 2019 contra R$ 81,7 milhões em 2018, segundo dados levantados pela Folha de S. Paulo via Lei de Acesso à Informação e Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo (Siop).

Com a verba dos repasses federais reduzida em 2019, os municípios enfrentam dificuldades para expandir o número de vagas. O cenário é pior nas grandes cidades, onde a espera para conseguir uma vaga chega a demorar mais de um ano.

Esse é o caso da filha da paulistana Katherine Mieko, que aguarda há um ano e seis meses por uma vaga em alguma creche pública perto da sua casa, na Zona Leste de São Paulo.

"Minha filha entrou na lista com seis meses de idade. Hoje ela está com dois anos e ainda não foi chamada. Já reclamei, fiz protocolo da reclamação na Secretaria Municipal de Ensino, e me responderam que não há nada a fazer, que não há novas vagas", conta Katherine, que colocou como preferência de vaga apenas creches próximas a sua casa.

"Se abro para qualquer localização, corro o risco de a minha filha cair em uma creche em outro bairro", explica a paulistana, que mora a dois minutos de uma unidade pública. "Não tenho carro, então teria que levá-la de transporte público, mas não tenho condição de pagar a passagem do ônibus todos os dias."

Katherine saiu do mercado de trabalho desde que engravidou e, mais de dois anos depois, ainda não conseguiu retornar por não ter com quem deixar a filha.

"Enquanto aguardo a vaga na creche pública, só consigo fazer trabalhos como freelancer, que me pagam pouquíssimo, o que dá basicamente só para comprar as fraldas", diz. A filha de Katherine está na mesma posição na lista de espera desde o final do ano passado.

A paulistana Bruna Moura enfrenta o mesmo drama desde o começo do ano, quando começou a buscar uma creche pública na Zona Leste de São Paulo para sua filha, hoje com um ano e seis meses. Já são mais de cinco meses na lista de espera e, consequentemente, sem poder trabalhar.

"Concluí meu mestrado no ano passado. Para conseguir terminar a pesquisa, escrevia a dissertação depois que minha filha dormia, de madrugada", conta Bruna. "No começo do ano, procurei a creche porque preciso reingressar no mercado de trabalho e não tenho condição de pagar uma particular."

Bruna está há cinco meses procurando trabalho, sem sucesso. "Eu tenho dificuldade para sentar e elaborar um currículo diferenciado para cada vaga, e meu tempo de busca de vagas é limitado. Essas coisas seriam mais fáceis se eu tivesse um lugar seguro para deixar minha filha, nem que fosse durante quatro horas por dia", diz.

A filha de Bruna faz parte das 70% das crianças de zero a três anos de todo o Brasil que não têm acesso a creches públicas. Por isso, uma das metas do Plano Nacional de Educação é garantir acesso a creches e escolas infantis a 50% de todas as crianças nessa faixa etária até 2024.

Diante dos cortes na educação infantil, o educador Vital Didonet, assessor legislativo da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), afirma que essa meta não será alcançada.

"Em 2024, chegaremos no máximo a 44%. Isso significa que ficarão de fora da creche mais de meio milhão de crianças de famílias de renda baixa e que vivem em situações precárias de desenvolvimento e aprendizagem. Ou seja, as que mais necessitam da educação infantil", afirma.

O programa ProInfância

A coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), Andressa Pellanda, explica que a educação infantil é uma das etapas da educação básica com o maior desafio de acesso à educação pública no Brasil.

"Isso acontece por alguns motivos. Um deles é que a educação infantil é a etapa da educação básica que mais exige investimento o custo aluno-qualidade da creche urbana em tempo integral em 2019 é de R$ 19.131,00 por ano, comparado a R$ 7.198,00 para ensino médio na mesma localidade e modalidade", descreve Pellanda, citando dados calculados pela CNDE.

"Apesar do custo elevado, o ente responsável prioritariamente pela educação infantil são os municípios, que têm o menor recurso próprio e dependem de suplementação técnica e financeira da União", explica a coordenadora.

A suplementação financeira da União aos municípios voltada à educação infantil se dá por meio do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (ProInfância), instituído por lei em 2007, em que o governo federal repassa verba aos municípios, para que esses possam construir novas unidades de creches e pré-escolas e comprar mobiliário e equipamento para estes espaços.

Desde 2007, quando o ProInfância foi criado, o Ministério da Educação (MEC) aprovou a construção de 9.028 novas creches em todo o Brasil. Em 2019, 12 anos depois, mais da metade dessas creches, 4.981 unidades, ainda não foi finalizada.

Para Didonet, da RNPI, o ProInfância é um programa importante, mas falho em sua estrutura. "A União decidiu sozinha, desenhou os prédios, estabeleceu os requisitos para os municípios receberem os recursos e ofereceu oportunidade aos que se inscrevessem no ProInfância. Porém, muitos municípios não dispunham dos recursos para a manutenção dessas creches", explica.

Para ele, o programa deveria incluir o auxílio do Estado à formação de pessoal e à manutenção das atividades cotidianas das creches.

Parceria público-privada

Em Limeira, cidade a 150 quilômetros de São Paulo, a filha de Aline Alves ficou um ano na lista de espera até conseguir uma vaga numa creche.

"No ano passado, entrei com um processo na defensoria pública por causa da demora e, no começo deste ano, quando minha filha já tinha um ano e meio, consegui uma creche", conta Aline, explicando que, apesar de ter conseguido uma vaga, a filha não está matriculada na rede pública de educação infantil do município. "Minha filha faz parte do Bolsa Creche", explica.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Ensino de Limeira confirmou que todas as vagas ofertadas pela rede municipal na educação infantil que tem um total de 4.618 vagas estão preenchidas.

"Não há, no momento, planejamento para que novas unidades sejam construídas", complementou a assessoria de imprensa do município, explicando que a maior dificuldade de Limeira para construir novas creches é "o orçamento reduzido e escasso" (para a educação infantil).

Sem a possibilidade de construir novas unidades, a solução encontrada por Limeira para atender à demanda de quase 2 mil crianças de zero a três anos sem vaga em creches foi criar o Bolsa Creche, uma parceria municipal com unidades particulares, na qual o município repassa para a escola um valor por aluno da rede pública matriculado na unidade.

Apesar de ser uma alternativa para quem precisa de vagas imediatamente, programas como o Bolsa Creche não são bem vistos pelos especialistas a longo prazo.

"O voucher ou compra de vagas em estabelecimentos privados é uma forma de fortalecimento da tendência de alguns setores de privatizar os recursos públicos", explica Didonet. "A educação é um direito de toda pessoa desde o nascimento e um dever do Estado, enquanto que a intenção do mercado educacional é fazer da educação um bem comercial."

Para Pellanda, esse tipo de parcerias público-privadas deveria ter um caráter provisório. "A qualidade na educação infantil brasileira ainda está muito aquém do que deveria, justamente por conta da falta de investimentos públicos na educação pública e por conta da manutenção dessas parcerias público-privadas com organizações que não têm parâmetros adequados de qualidade na educação", afirma.

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