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A agenda progressista de Biden e o governo Bolsonaro

7 de novembro de 2020

Temas como direitos humanos, multilateralismo e proteção ambiental, defendidos durante a campanha de Biden, podem criar atrito com o Planalto. China pode ser fator decisivo.

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Joe Biden ao microfone ao lado de Kamala Harris
Uma das propostas de Biden é colocar direitos humanos "no centro" de sua política externa e internaFoto: Drew Angerer/Getty Images

O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, estruturou suas propostas de campanha de forma a agradar, além do establishment da sua legenda, as alas mais à esquerda do Partido Democrata, com o objetivo de atrair simpatizantes de lideranças como Bernie Sanders ou a jovem congressista Alexandria Ocasio-Cortez.

Isso deu à sua plataforma de governo um tom mais progressista do que a dos últimos candidatos democratas à Casa Branca, com propostas que incluem fortalecer os direitos humanos, apoiar políticas de direitos LGBTQ sobre gênero e sexualidade, valorizar organismos multilaterais e apoiar sindicatos e direitos trabalhistas, além de colocar a economia de seu país na rota da sustentabilidade, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.

São temas que entram em choque com a linha política do governo Jair Bolsonaro e podem criar atrito com o Palácio do Planalto. O apoio americano à entrada do Brasil na Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) deve se reduzir, os Estados Unidos tendem a se opor à posição do governo brasileiro em temas relativos a democracia e direitos humanos, a negociação de novos acordos comerciais entre os dois países deve incluir também cláusulas sobre regras trabalhistas e a pressão para que a Floresta Amazônia seja preservada deve aumentar.

O potencial de esses conflitos escalarem para sanções graves, como o bloqueio de investimentos e transações comerciais com o Brasil, porém, é baixo, devido à prioridade americana de conter o avanço da China pelo mundo, inclusive na América Latina. Uma posição muito dura em relação a Bolsonaro poderia forçar o país a se abrir ainda mais a Pequim.

Direitos humanos e organismos multilaterais

Uma das propostas do programa de Biden é colocar os direitos humanos "no centro" de sua política externa e interna, assim como dar tratamento digno aos imigrantes e proteger pessoas LGBTQ de discriminação e violência.

São perspectivas diversas das da gestão Donald Trump. No começo do mandato do republicano, os Estados Unidos se retiraram do Conselho de Direitos Humanos da ONU e implementaram uma política de separação forçada de crianças de pais que tivessem sido detidos por imigração ilegal. 

O atual presidente dos Estados Unidos também bloqueou o funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à Organização dos Estados Americanos, em casos relacionados a liberdade de expressão e a povos indígenas, e fez seguidos ataques à imprensa americana, ressalta Felipe Pereira Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos.

Ameaças e decisões semelhantes foram adotadas pelo presidente brasileiro. Em agosto de 2018, quando ainda estava em campanha, Bolsonaro afirmou que retiraria o Brasil do Conselho de Direitos Humanos da ONU , "por sempre estarem ao lado de tudo que não presta", mas não o fez até o momento.

Em junho de 2020, o Brasil apoiou uma resolução para que o órgão deixasse de ter a função de monitorar violações e se tornasse apenas um fórum de cooperação, uma proposta apresentada por China, Cuba, Venezuela, Irã e Síria. No mesmo mês, ajudou os Estados Unidos a bloquear a abertura de uma comissão internacional de inquérito para apurar o racismo sistêmico, após a morte do americano George Floyd, estrangulado por um policial branco em Minneapolis.

O comportamento de Trump em relação aos direitos humanos "criou um espelho para que Bolsonaro reproduzisse essa imagem internamente", diz Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV.

A mudança de orientação prometida por Biden fará com que Bolsonaro perca a retaguarda americana para adotar posições contrárias aos direitos humanos em fóruns internacionais e fique mais isolado caso mantenha essas posturas.

Biden propõe repor a credibilidade dos Estados Unidos na política externa, retomando alianças tradicionais e apoiando organismos multilaterais, em articulação com a defesa de direitos humanos. Isso deve reduzir ou extinguir o apoio da Casa Branca à adesão do Brasil a fóruns e a órgãos internacionais relevantes, como a OCDE, da qual o governo Bolsonaro tenta obter o status de membro efetivo para o Brasil.

"Não vejo o governo Biden defendendo que o Brasil seja aceito como membro da OCDE. Além de uma preocupação com transparência e accountability dos Estados que a integram, a OCDE tem um elemento que é a garantia de uma democracia liberal, com respeito mínimo às liberdades, inclusive à liberdade de imprensa. E a forma como Bolsonaro atua nesse aspecto vai muito além do que o governo Biden consideraria como razoável", diz Loureiro.

Regras trabalhistas e meio ambiente

Para atrair o eleitor americano de classe média que vê seu emprego e nível de renda ameaçados, Biden prometeu fortalecer o poder de sindicatos e da negociação trabalhista coletiva, que vêm sendo enfraquecidos há décadas nos Estados Unidos.

Isso terá repercussões também na política externa de seu governo, com a provável inclusão de cláusulas sobre regras trabalhistas em futuros acordos comerciais, diz Loureiro.

A inclusão de regras trabalhistas em acordos comerciais tem o objetivo de criar um nível de competição mais equilibrado e evitar diferenças muito significativas no custo com empregados e condições de trabalho entre os Estados Unidos e outros países com os quais haja acordos comerciais, para reduzir a chance de empresas americanas substituírem posições em solo americano por funcionários em outros países.

"Isso pode ir de encontro a interesses empresariais no Brasil, pois a gente vem num movimento muito forte de desregulamentação do direito do trabalho e de redução de custos. Vai afetar interesses da classe empresarial brasileira e tende a tornar as negociações mais difíceis", afirma o professor da USP.

Outro ponto da plataforma do presidente americano eleito que provocará reflexos no Brasil é a questão ambiental. Sob seu governo, acordos comerciais devem incluir também cláusulas que exijam a defesa do meio ambiente, e a pressão para conter queimadas e desmatamentos será maior.

Em debate com Trump em 29 de outubro, Biden chegou a afirmar que reuniria 20 bilhões de dólares para oferecer ao Brasil em troca da preservação da Amazônia. Se o desmatamento não parasse, o país enfrentaria "consequências econômicas significativas", disse, acenando com represálias e sanções.

Essa postura deve estimular o governo brasileiro, que já vem sofrendo fortes pressões da União Europeia nesse sentido, a olhar com mais atenção para a questão ambiental. Para alcançar esse objetivo, o governo americano tende a acionar outros interlocutores no governo brasileiro além de Bolsonaro, como o vice-presidente Hamilton Mourão, que preside o Conselho da Amazônia, avalia Loureiro.

O fator China

Ambos os professores ponderam que as tensões entre o governo Biden e Bolsonaro não devem escalar para sanções graves dos Estados Unidos ao Brasil, pois serão balanceadas por outro objetivo primordial para o governo Biden: conter a expansão chinesa.

Nesse ponto, Bolsonaro e o novo presidente americano estão hoje alinhados na crítica à China. Mas, se a Casa Branca for rígida demais com o Brasil, pode acabar forçando o país a se abrir mais à influência de Pequim.

"Se os Estados Unidos tiverem uma atuação mais dura, podem acabar jogando o Brasil para os braços da China, mesmo que seja algo que o Bolsonaro não gostaria que acontecesse. Não vejo as tensões com o governo brasileiro ficando muito sérias, a relação vai evoluir para algo mais pragmático e low profile", diz Loureiro.

Brites, da FGV, afirma que o Brasil é o Estado-pivô da disputa entre as duas potências na América Latina, além de um grande mercado para a tecnologia 5G.

"É difícil acreditar que o Brasil não seguirá sendo crítico à China, Bolsonaro tem que fazer isso para mobilizar a sua base interna. A não ser que os Estados Unidos façam muita pressão sobre o Brasil, e o Brasil tenha que flertar com a China para que os americanos sejam mais gentis com os brasileiros",  afirma.