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América Latina precisa de solidariedade

Thofern Uta
Uta Thofern
29 de outubro de 2019

Chile em estado de exceção, protestos violentos na Bolívia, megapasseatas no Equador, Argentina recaindo na política da falência, Brasil totalmente polarizado. Miopia e arrogância são as causas, opina Uta Thofern.

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Manifestante de nariz de palhaço grita diante de fogueira na rua
Manifestante no Chile. País vem sendo palco de uma série de protestos contra o governoFoto: picture-alliance/dpa/R. Abd

Do ponto de vista político, há enormes diferenças entre a Venezuela e o Chile, ou entre Bolívia e Brasil. Contudo são visíveis pontos em comum no tocante à arrogância do poder e às causas dos protestos do passado recente, em parte violentos.

Na América Latina, praticamente não existe um esforço autêntico e, acima de tudo, duradouro para alcançar equilíbrio social. Observa-se, antes, uma tendência ou à distribuição socialista, ou à política de consolidação neoliberal, só levando em conta a própria clientela e castigando ou, no mínimo, desprezando o adversário político.

Nem mesmo o Chile – o país que estava menos politicamente polarizado, mais acostumado ao consenso e que ia melhor economicamente – conseguiu alcançar uma política de equilíbrio social. Os fossos que lá se manifestaram não separam as facções políticas, mas sim os que tudo têm dos que querem mais e não o obtêm.

Nos últimos anos, a pobreza absoluta diminuiu drasticamente no Chile – da mesma forma, aliás, que na Bolívia e no Brasil. Porém a nova classe média também quer chances de ascensão, participação real, um futuro melhor para seus filhos e, acima de tudo, não voltar a cair na pobreza. Não ter reconhecido ou compreendido essas necessidades atesta uma assustadora indiferença por parte dos chilenos de posses.

A Bolívia e a Venezuela – mas também o Brasil dos tempos do PT – se ativeram a uma política da pura distribuição de renda, sem investir de forma séria ou duradoura em educação, infraestrutura ou sistemas solidários de seguridade. Enquanto os preços das matérias-primas estivessem bem, o Estado podia distribuir generosas subvenções entre as camadas mais pobres.

Entretanto tais benemerências permanecem sendo esmolas, se não há um compromisso social recíproco ancorado na lei – na forma, por exemplo, de um contrato entre as gerações num seguro-aposentadoria que funcione. Não houve a respeito um diálogo político, incluindo necessariamente as classes abastadas e seus representantes políticos. Em vez disso, a oposição foi excluída, a distribuição das benemerências foi abusada como meio de preservar poder. O resultado é como se vê: a Venezuela é uma ditadura e, seguindo rotas diferentes, a Bolívia e o Brasil vão na mesma direção.

A Argentina oscila há décadas entre os extremos, sem que jamais se chegasse a um consenso real entre os diferentes grupos da sociedade. A única constante parece ser a total falta de disposição de confiar ou sequer investir no próprio país. Até hoje, os argentinos que têm dinheiro preferem investi-lo antes em dólares do que na própria moeda, não importa quem esteja no governo.

Solidariedade com todos os concidadãos, independente da classe social; solidariedade até com o Estado, ou pelo menos com o país em que, afinal, se vive junto? Pagar impostos e tarifas sociais para o bem comum? Nem pensar! O lema é pegar tudo o que se consiga, em todas as camadas sociais, quase por toda parte.

A tributação é, em parte, pequena demais, o número dos contribuintes também, e a sonegação de impostos atravessa todos os setores da sociedade: não é acaso o setor informal ser tão grande na América Latina. Por conseguinte, o Estado se financia através dos impostos sobre o consumo, o que, por sua vez, pesa sobre a população mais pobre. O Uruguai é talvez a única nação latino-americana que conseguiu alguma forma de equilíbrio na legislação tributária, embora também lá o consenso a esse respeito esteja se esfacelando.

As causas para a desconfiança e a atitude de recusa perante a comunidade são numerosas, indo desde os efeitos persistentes do colonialismo, com sua exploração e racismo; passando pelo processamento desigual – e, por exemplo no Chile, altamente insuficiente – das ditaduras, ou das guerras civis, como na Colômbia ou no Peru; até a atual polarização entre as diferentes camadas sociais e agrupamentos políticos, instigada pelas redes "sociais" –sem esquecer a corrupção onipresente.

Acrescente-se que, devido à vivência da ditadura, muitas vezes a reeleição dos políticos não está prevista, ou só é possível uma vez. Isso, porém, limita seriamente a possibilidade de responsabilizar a política, ao mesmo tempo em que os sistemas ainda presidencialistas restringem o controle democrático.

A América Latina tem uma montanha de problemas atuais e passados a vencer, mas a esta altura deveria estar claro que a coisa não funcionará sem esforços conjuntos, sem consenso social. Nesse contexto, cabe reforçar algumas verdades óbvias:

Não, ninguém tem direito a mais privilégios do que outros, devido a sua origem. Sim, quem trabalha mais e tem mais responsabilidade também deve ganhar mais, contanto que pague mais impostos, dentro do aceitável.

Sim, todos têm direito a participação e a continuar se desenvolvendo. Não, isso não se alcança sem esforço e só através da redistribuição. O bolo acaba logo se ninguém mexe a massa, por maiores ou menores que sejam as fatias.

Um Estado que não impõe e não arrecada os devidos impostos, fracassou. Quem não quer pagar seus impostos não é cidadão.

Sem concessões recíprocas não há solução. Violência contra pessoas ou coisas – seja repressão estatal, seja vandalismo sem consideração pela vida humana – geram reação violenta.

Diálogo e consenso, moderação e meio-termo podem soar maçantes, mas faria bem à América Latina ter um tanto mais disso.

Uta Thofern é chefe do Departamento América Latina da DW

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Thofern Uta
Uta Thofern Chefe do Departamento América Latina. Democracia, Estado de direito e direitos humanos são seu foco.