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Pé na Praia: O remédio na selva

Thomas Fischermann
16 de novembro de 2016

A vida de correspondente leva a situações inusitadas. Uma delas foi o encontro com um agente de saúde bêbado em plena selva amazônica, conta Thomas Fischermann na coluna desta semana.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Meu emprego de correspondente me leva a situações inusitadas. Uma delas foi o encontro com o agente de saúde bêbado. Estava viajando na minha região predileta do Brasil, na selva amazônica, bem ao norte do país. Lá, percursos são longos, por estradas empoeiradas e tem que ser interrompidos muitas vezes. Rios atravessam o caminho. Assim, do nada, apareceu uma placa: "Por motivo de alimentação é necessário descanso dos funcionários da balsa, que não estará funcionando entre 11h e 12h, assim como entre 19h e 20h."

Mas o que a placa não diz é que tanto faz: você sempre tem que esperar por duas ou três horinhas. No Amazonas a vida tem outro ritmo. O jeito foi, então, o fotógrafo e o jornalista da Alemanha irem para o bar do rio e se juntarem ao grupo dos cachaceiros matutinos. Havia um homem descabelado e com a barba por fazer; ele veio e nos cumprimentou. Vestia uma bermuda na altura dos joelhos e uma camiseta verde desbotada. Será que ele poderia nos mostrar alguma coisa? O ambulatório para malária e a farmácia em uma casinha de madeira, logo ali na beira do rio?

O homem, acabamos descobrindo, era responsável pelos cuidados médicos em boa parte dessa área. Cuidava dos trabalhadores na floresta, donos de motel para caminhoneiros, professoras da escola primária e de muitas crianças.

O agente de saúde frequentou a escola por alguns anos. Recebeu seus conhecimentos sobre doenças e ferimentos em um curso rápido na cidade. Fazia seu trabalho com um viés heroico. "Na época da chuva esse lugar permanece muitas vezes isolado do resto do mundo. Por semanas até", explicou. Com o rio transbordando, nem mesmo carros de tração nas quatro rodas passam, e um transporte de ambulância torna-se difícil. O agente mostrou sua estante de ferro cheia de remédios, com estoque sempre renovado pelo governo: testes e medicamentos para malária, pílulas para dor e muito mais.

Quando já tínhamos conversado por um tempo, ele procurou seu pacote com amostras de cremes e nos deu algumas de presente. "Passem muito creme, a pele seca rápido com o sol!", nos aconselhou. Cumprindo seu dever, nos orientou sobre como fazer um teste de malária. Abriu com uma chave o armário no qual estava um microscópio enorme. Indicou com o dedo uns pôsteres esmaecidos na parede, onde doenças conhecidas e seus causadores apareciam ilustrados. Nos ensinou muita coisa.

"A malária é curável, aqui tenho tudo sob controle", disse o agente de saúde quando soou o apito da balsa nos chamando de volta. No caminho, o sol da manhã ardia, escaldante. Lembramos do seu conselho e pegamos o presente, as amostras de creme. "Loção vaginal lubrificante” estava escrito na embalagem. Decidimos ficar com queimaduras de sol mesmo.

Thomas Fischermann é correspondente do jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Na coluna Pé na praia, publicada às quartas-feira na DW Brasil, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens pelo Brasil. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.