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Pé na praia: Picanha para o filho do cacique

Thomas Fischermann
27 de setembro de 2017

Às margens do Rio Negro, o repórter Thomas Fischermann conheceu Irineu, do povo Baniwa. Quando vai à cidade, o filho do cacique vende produtos cultivados com métodos tradicionais e compra "delícias", como café e carne.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Às margens do Rio Negro e de seus afluentes, no noroeste da Floresta Amazônica, há grupos distintos de rochas. Na superfície, foram gravados desenhos misteriosos: espirais e pontos, figuras de cobras e redes. "As pedras estão aí desde o começo dos tempos. Já estavam quando meu povo nasceu. O criador do mundo as deixou para nós", conta Irineu Baniwa.

O problema é que ninguém sabe direito o que as pedras significam. Os petróglifos foram dispostos nas curvas do rio, nas cachoeiras, nas colinas, até mesmo em lugares secretos embaixo d'água. Arqueólogos e antropólogos das melhores universidades do mundo já organizaram expedições para a região.

Parece que ali existiram civilizações que desapareceram, das quais ninguém mais sabe. Também parece que eram muito desenvolvidas. Os descendentes dessas culturas são – supõe-se – povos como os Baniwa. Ou os Baniwa mataram os antigos povos e se instalaram em seu território. Ou, ou, ou.

Irineu, de 44 anos de idade, é filho de um cacique da região. Fala bem português, então, é sempre enviado para receber os visitantes. "Provavelmente sou mais bem informado sobre estas pedras que meu pai. Nos últimos tempos, guiei tantos antropólogos, eles me explicaram muita coisa!", disse.

Estávamos a caminho, de barco e à pé, no território dos Baniwa. Irineu ia na frente, abria caminho tirando os gravetos que obstruíam a passagem. Usava calção de banho e uma camisa de futebol da Adidas. Minhas botas à prova de picada de cobra estavam desagradavelmente cheias de lama, apesar de eu tirá-las para cruzar uns riachos ou me equilibrar sobre um tronco. Suponho que muitas narrativas folclóricas dos povos indígenas tenham como figura central algum alemão desamparado tentando se deslocar pela selva.

Nesta visita, eu não quis ver as famosas pedras, mas os campos de cultivo. No momento, estou trabalhando em um artigo sobre arqueologia no Amazonas, e vários pesquisadores me contaram que seu interesse não são somente artefatos, cerâmica, flechas e ferramentas encontradas no solo. Para decifrar os segredos das antigas culturas, também pesquisam as roças dos povos indígenas atuais.

Talvez os Baniwa e seus povos vizinhos ainda conheçam alguns desses segredos? O solo na região amazônica é, geralmente, pouco fértil e pobre em minerais – mas, na proximidade de povoados pré-históricos, encontra-se uma terra fértil. Esta teria sido produzida por humanos há milhares de anos, e foi, segundo os pesquisadores, um dos primeiro projetos de engenharia agrária do planeta. A terra teria sistematicamente recebido restos de comida, excrementos de animais, cacos de cerâmica e pedaços de carvão vegetal. Alguns destes vestígios de terra têm 7 mil anos de idade.

"Ainda trabalhamos na roça como nos tempos antigos", disse Irineu, entusiasmado. As 25 famílias de sua aldeia vão todas as manhãs para o trabalho, às 8 horas, e cuidam da plantação de batata, mandioca, abacaxi e banana, cana-de-açúcar e vários tipos de legumes e verduras. Algumas plantas só crescem no solo pouco fértil com métodos refinados: os Baniwa fazem carvão de tipos específicos de madeira e o enterra nas raízes como adubo. "Para cada planta existe um segredo", explicou Irineu.

Reconheço que a minha visita me deixou um tanto cético. Quem garante que, antigamente, os povos misteriosos que deixaram estas pedras na selva plantavam do mesmo jeito que os Baniwa? Com a chegada dos colonizadores da Europa, seus mercadores e missionários trouxeram sal e sabão. Os antigos habitantes foram persuadidos a cultivar plantas comerciáveis. Rituais – que entre outras coisas preservavam os conhecimentos antigos sobre agricultura – foram banidos como coisa do diabo. Já sabemos o que acontece quando culturas com saberes milenares se depararam com visitantes do ocidente: em duas, três gerações, tudo desaparece.

"Os antigos dizem que, antigamente, cada aldeia tinha um mestre que decidia tudo sobre o cultivo da terra", contou o filho do cacique, ao finalmente aproximar-nos dos campos de seu povo. Estávamos em uma clareira onde a floresta fora queimada. Os Baniwa faziam ali sua plantação. Cultivaram a terra por alguns anos, e então deixaram as áreas crescer novamente, para que não se tornassem desertos.

E o que Irineu contou para os pesquisadores? "Os antigos dizem que os mestres não derrubavam ou ateavam fogo às árvores, mas que elas simplesmente tombavam após seu comando", contou Irineu Baniwa. Interessante. Magia? "Sim, magia", respondeu o filho do cacique com a expressão séria. Mas ninguém mais sabe como era.

Antigamente, disse, os Baniwa também pescavam jogando raízes venenosas na água. Então, os animais, anestesiados, eram simplesmente retirados do rio. Mas somente a quantidade necessária para as pessoas da aldeia. Depois, o pajé fazia uma mágica para reanimar os peixes restantes e fazê-los pular. "Também não sabemos mais como era", disse Irineu. "Agora, quando usamos essa técnica, os peixes não acordam mais."

No decorrer da conversa, fiquei sabendo que os Baniwa obtêm sua comida com anzóis, redes e armas de fogo para caçar na floresta. Vendem pimenta e farinha na cidade vizinha e, com o dinheiro, compram o que lhes falta. Café, por exemplo, para beber de manhã antes do trabalho, em vez do tradicional caldo de raízes de mandioca.

"E algumas vezes também galinhas", contou Irineu. Ele disse que seu prato preferido é peixe – preparado com pimenta, tucupi, caruru e um molho de formigas saúva – e, em outros dias, ele gosta de "uma boa picanha". Para ele, tudo o que se pode comprar na cidade é uma delícia.

Tenho certeza de uma coisa: quando, em alguns milhares de anos, arqueólogos retornarem para descobrir quem viveu próximo a essas pedras misteriosas, encontrarão enigmas muito mais difíceis de decifrar.

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna „Pé na Praia" faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.