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Pé na Praia: Quando aleijados reaprendem a andar

14 de dezembro de 2016

Mãe Norma é uma sacerdotisa da religião umbandista – mas não para os seus inimigos, que a chamam de macumbeira e inventam histórias sobre ela. Thomas Fischermann relata seu encontro com o ódio religioso brasileiro.

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Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Tenho um certo sentimento de culpa por manter tão pouco contato com Mãe Norma. Mãe Norma vive num bairro da cidade industrial de Contagem, onde é conhecida como "a macumbeira". Sua casa é pintada da cor roxa, e na entrada há grades pesadas de ferro.

"A macumbeira": é claro que somente os outros a chamam assim – aqueles que atravessam a rua ou ficam com medo quando Norma passa por eles. Mãe Norma é uma mãe de santo, uma sacerdotisa da religião umbandista, aquela que conhece segredos anciões que remetem às raízes da escravatura brasileira. Naquela época visitei o terreiro de Mãe Norma algumas vezes. Pedi para que me explicasse a mistura complicada de práticas de ocultismo com filosofias de diferentes religiões.

Na Umbanda, conforme fiquei sabendo em minha reportagem para o semanário alemão Die Zeit, acredita-se em deuses da natureza africanos, em demônios, no diálogo com os mortos através da mediunidade e do transe, mas também em reencarnação e carma, como os hinduístas, e além disso  também em orações como Ave Maria – em muitas coisas ao mesmo tempo, milagrosamente misturadas.

Imagino que, para os espíritos que descem na Mãe Norma, eu, um homem branco, alto e magricela, oriundo do outro hemisfério terrestre, católico da Renânia, devo ter sido um visitante fora do comum. Mesmo assim fui recebido calorosamente, e tenho até hoje a bênção de Mãe Norma. Ela não se esqueceu de mim: de vez em quando me manda smileys e emoticons encorajadores pelo Facebook.

Mas há um aspecto que me deixou chocado em Contagem: fiquei muito surpreso em saber que existem inimigos que, cheios de ódio, lutam contra a Umbanda e outras religiões afro-brasileiras. Descobri uma verdadeira guerra brasileira de religiões. Estive em igrejas neopentecostais onde, lá na frente, no altar, falavam dos feitiços e da obra do demônio dos "macumbeiros". Uma vez ouvi uma pregação sinistra que acusava as mães e pais de santo de atrair as crianças da escola para certas festividades com a finalidade de assassiná-las e beber o seu sangue. Ouvi gritos conclamando para vandalismo e até linchamento.

"Só pessoas desinformadas fazem isso", disse Mãe Norma na ocasião. "No meu terreiro ninguém se atreve a fazer isso!" Sentada no seu trono, ela fazia um gesto de reprovação. Usava colares com voltas e mais voltas, cheios de nós e de contas misteriosas. Em vez de falar sobre seus inimigos, preferia conversar comigo sobre o exército de figuras sagradas em sua estante.

Mas continuei fuçando e descobri que houve, sim, episódios isolados: discriminação e violência em sua pequena comunidade de 70 "filhas e filhos" e na vizinhança. Uma frequentadora de seu templo havia perdido há pouco seu emprego de vendedora em um shopping: como "satanista", ela não seria aceitável para a clientela. Em um outro templo do bairro, todo fim de semana jogavam pedras nas janelas até quebrar as vidraças. Em um terreiro vizinho, uma mãe de santo amiga de Norma contou que 20 policiais de um comando especial baixaram lá e queriam prender todo mundo – porque moradores inventaram histórias de sequestros e torturas e denunciaram tudo à polícia.

Creio que, na época, Mãe Norma também teve medo de que eu escrevesse em meu artigo sobretudo sobre demônios, espíritos do mal e o lado obscuro de sua religião, que eu pudesse trazer problemas para ela e os seguidores da Umbanda. Por isso falou comigo com cuidado, me convidou para os rituais especialmente festivos. Reforçou o lado social de seu trabalho, sua ajuda com dependentes de drogas e pessoas mentalmente perturbadas, a assistência aos desempregados na procura de emprego. Dizia bem alto: "Não estou aqui para doutrinar ninguém, as pessoas vêm a mim".

Mas, Mãe Norma, perguntei na época, como foi mesmo a história da cura milagrosa? As pessoas não comentam por toda a cidade que, certo dia, uma mulher numa cadeira de rodas, que já havia sido desenganada por todos os médicos, entrou no terreiro da Mãe Norma? E nesse meio tempo ela voltou a andar? A senhora consegue curar aleijados, Mãe Norma? Afinal, a senhora não seria, sim, uma macumbeira?

"Sim, a mulher está de pé de novo", esclareceu a sacerdotisa, e riu. "Deve ter sido um problema espiritual, um problema da cabeça. Se ela tivesse mesmo um problema médico – você realmente acredita que eu teria podido curá-la? Como é que eu conseguiria algo assim?"

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna "Pé na Praia" faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos – no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.