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Pé na praia: Vida sem lei

Thomas Fischermann
12 de outubro de 2016

O jornalista alemão Thomas Fischermann se aventura mais uma vez pela Amazônia e fala sobre o povoado conhecido como 180, onde ninguém acha bom proteger a floresta e quer mesmo é viver sem lei.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Em viagens pela Amazônia, às vezes dou uma passada pelo "180". É um lugar que se chama assim porque está a uma distância de 180 quilômetros da próxima cidade. Um povoado de cinco mil habitantes feito de casas de madeira no meio da floresta, onde dá para tomar uma deliciosa cerveja "Crystal" na beira da estrada e ser servido com um espetinho de coração de galinha.

Só que é preciso ter cuidado – 180 é um lugar perigoso. Tive que aprender isso em viagens pelo interior do Brasil: aqui os cenários de velho oeste de alguns lugarejos não foram feitos para turistas. Quando um povoado se parece com o de "Django vem para matar", provavelmente é realmente assim. Pode ser que um gringo como eu tenha carta branca por lá – mas não confio nisso de jeito nenhum.

Os poucos negócios que prosperam em 180 indicam uma população embrutecida: trabalho de madeireiro, venda de motosserras e conserto de veículos utilitários. Prostituição, venda de aguardente e assassinato de aluguel.

"No mês passado, as coisas por aqui ficaram quentes de novo", diz meu contato favorito desse lugarejo, um homem chamado Marcos Aurélio, já escrevi sobre ele. Com o passar do tempo, se tornou um bom amigo. Marcos é um ex-garimpeiro. Já teve uma vida louca, bebia cachaça para curar malária e andava armado pela floresta. Hoje tem 46 anos de idade e virou beato. Vive na beira da estrada cuidando de seu hotelzinho para motoristas de caminhão.

O que significa exatamente "as coisas ficaram quentes por aqui", Marcos Aurélio? Bem, ele responde: uma nova onda de violência irrompeu na vila. Teve até assaltos em plena luz do dia. E trocas de tiros que deixaram mortos.

Neste momento, fico realmente confuso: não consigo entender como informante conta isso tão tranquilamente, em tom de conversa fiada. Parece que os habitantes acham a violência muito incômoda, mas avaliam que também seja um sinal de tempos prósperos. Todos os meses, jovens vêm de toda parte do país para trabalhar e para viver livres e sem lei. Há serrarias sem autorização, motoristas sem documentação do carro, pistoleiros sem registro de armas. Criminosos procurados vêm para o 180 para se esconder por alguns meses.

"A liberdade me trouxe até aqui", esclarece Marcos Aurélio, que vive no povoado há 9 anos. "No 180 não tem polícia parando as pessoas na rua e dizendo: mostre a sua carteira de motorista! Prove que essa motocicleta realmente te pertence! Use o capacete! Isso eu não iria aguentar."

A desvantagem é o derramamento de sangue. Há 90 dias, balearam Cida, pastora numa Assembleia Evangélica, e seu filho de 23 anos. Seu sangue está grudado até hoje na Igreja. Um matador, que gostava de andar de motocicleta e atirar coisas nos vidros das janelas, foi espancado por dois homens desconhecidos. Johnny, que tinha uma fazenda na região e aliciava bêbados como diaristas – morto. Um homem que todos chamavam de "sem camisa" – também já era. Alguns cadáveres foram encontrados dentro de sacos e no rio, mas não conseguiram identificar quem eram.

A onda de violência foi o assunto da cidade por semanas. Por fim, alguns moradores chegaram a chamar a polícia. Mas seu entusiasmo pela lei não durou. A polícia apareceu acompanhada de dois veículos do Ibama. Funcionários vão, armados, de serraria em serraria. Destroem máquinas, confiscam livros de contabilidade e querem salvar a floresta da destruição.

Ninguém de 180 acha isso bom. "Ainda vão conseguir prejudicar toda a nossa economia!", xinga Marcos Aurélio. "Eles têm que desaparecer! Senão, em pouco tempo, vamos viver na pobreza como os índios e nos alimentar de carne de macaco e castanhas!"

Thomas Fischermann é correspondente do jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Na coluna Pé na praia, publicada às quartas-feira na DW Brasil, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens pelo Brasil. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.