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Entrevista

22 de junho de 2011

Chefe da seção das Américas da ONG Repórteres sem Fronteiras, Benoît Hervieu, ressalta que a tensa relação entre governos de esquerda e imprensa vem revelando guerras midiáticas na América Latina.

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Benoît Hervieu, von Reporter ohne Grenzen in Frankreich --- Reporters sans frontières
Hervieu: 'são várias as fontes de perigo para a liberdade de expressão'.Foto: Benoît Hervieu/RSF
O forte confronto ideológico na América Latina pode gerar extremismos perigosos para a liberdade de imprensa no continente. Essa é a avaliação de Benoît Hervieu, chefe para região das Américas da ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF).
Em entrevista à Deutsche Welle, o francês apontou alguns desafios para promover a liberdade de imprensa e a defesa dos direitos humanos em países latino-americanos comandados por governos de esquerda. Muitos vivem relações claramente tensas com a mídia. "Existe uma militância que é prova da saúde democrática, mas também pode ser um perigo", acredita Hervieu, citando recentes exemplos na Venezuela, na Colômbia, em Honduras.
Já no Brasil, o grande problema são os fortes interesses políticos e econômicos sobre o trabalho da mídia. "Não é normal que os ex-presidentes Sarney e Collor, que têm parentes donos de veículos de imprensa, sejam membros da Comissão de Tecnologia do Senado Federal. Isso é inconcebível", avalia o ativista.
Benoît Hervieu foi um dos convidados do painel "Jornalismo e guerra contra o narcotráfico na América Latina", realizado pelo Deutsche Welle Global Media Forum, na cidade de Bonn. Em conversa com a DW, Hervieu aponta que o crescimento do tráfico de drogas no continente e os interesses econômicos gerados pelo comércio ilegal oferecem perigo para os jornalistas.
Deutsche Welle: Existe uma percepção de mudanças das rotas do tráfico de drogas no continente americano?
Benoît Hervieu: Sim. Havia rotas clássicas no norte e, agora, também temos rotas no sul. Vemos o desenvolvimento do tráfico em um país como o Paraguai. E também nas fronteiras do Brasil, em regiões como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que são pontos importantes do tráfico. Estamos assistindo à globalização do crime organizado – que é um aspecto da globalização.
Várias regiões têm dupla economia, como parte do território brasileiro, estados como Acre, Amazonas, Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, parte do território paranaense na fronteira com Paraguai. E cidades da América do Sul como Ciudad Del Este, Foz do Iguaçu. Sabemos que são pontos estratégicos do tráfico, com infiltração na economia local e na política local. Isso faz com que seja muito difícil promover proteção para os jornalistas que ousam falar desses assuntos, porque os interesses são enormes.
Hoje se vive um momento positivo de desenvolvimento socioeconômico na América Latina. Quais as expectativas em relação à defesa de direitos humanos e da liberdade de imprensa no continente?
Uma coisa é o desenvolvimento, outra coisa é compartilhar a riqueza produzida por ele. Ainda há um problema de desigualdade social na América Latina para se resolver, de contraste entre vários setores das populações. O crime organizado, por exemplo, se aproveita do desenvolvimento para estar presente nos assuntos legais dos países. Nas Américas, as fontes de perigo para a liberdade de imprensa e de expressão são várias. Existe, com certeza, o risco físico para jornalistas, sobretudo em países onde a violência do narcotráfico e do crime organizado é forte. Como no México e na América Central e alguns países da América do Sul.
Como os governos vêm se comportando em relação a estas questões?
O fato novo e interessante, sobretudo na América do Sul, foi a chegada, a partir desta última década, de governos progressistas vindos da esquerda que tiveram um confronto quase imediato com uma imprensa grande, importante, em mãos de oligarquias que tradicionalmente governavam o país. Isso revelou situações de guerras midiáticas em diferentes graus.
Essa ainda é uma dificuldade típica na América Latina?
A problemática existe em outros países europeus, onde há concentração midiática também. Mas o assunto é muito mais político e ideológico na América Latina – o continente do confronto ideológico forte. O problema é desconcentrar, favorecer o pluralismo. Houve várias iniciativas para melhorar, como na Argentina, com a Lei de Serviço de Comunicação Audiovisual. Nós da RSF a apoiamos, apesar da reação de grupos como o Clarín. No Brasil, uma máquina midiática como a Globo pode fazer ou destruir um candidato. Foi o caso do Collor, no fim dos anos 80.
Como avalia as mudanças surgidas a partir destes governos?
No Equador e na Bolívia, além do confronto e da tensão direta entre os governos e a mídia tradicional, houve um desenvolvimento de um certo público, que não tinha voz. Houve a promoção de espaços mais abertos para outras formas de comunicação. Também na Bolívia existiu um debate e, finalmente, houve a lei contra o racismo, que era uma lei importante.
O problema é que, declarações racistas de uma pessoa entrevistada na rua poderiam fazer com que o veículo de imprensa fosse condenado, embora esta não fosse sua linha editorial.
Estas confusões podem produzir limitações perigosas da liberdade de expressão. Existem países onde a evolução foi quase ausente, como no Chile, que é mais conservador. Esperava-se muito mais do governo de Bachelet. Já no Brasil, o problema é o contraste. Por isso é muito mais difícil uma evolução global sobre um único assunto que favoreça a maior liberdade de expressão e de imprensa no Brasil.
Existe compromisso dos veículos de comunicação privados com a defesa dos direitos humanos no continente?
De maneira insuficiente. O direito à comunicação também faz parte dos direitos humanos, segundo uma convenção norte-americana, que prevê espaço de comunicação para as minorias. Mas nem todos os países oferecem legislação adequada a esta convenção. O pior exemplo agora é Honduras, depois do golpe de Estado.
É uma situação dramática, porque foi um golpe midiático também. Há uma imprensa de oposição ou comunitária vítima de perseguições permanentes por parte do governo promovido pelo golpe. A Venezuela também vive uma situação extrema. Em 2002, quando houve o golpe contra Chávez, as televisões privadas apoiaram, ou esperavam, o sucesso do golpe.
Com a pretensão de lutar contra o oligopólio da mídia, a reação de Chávez foi criar um oligopólio de Estado, com a concentração pública ou estatal dos veículos audiovisuais. O presidente pode, quando ele quiser, e com a duração que quiser, recolher todas as frequências para falar durante seis, nove horas. Isso é um atentado claro contra a liberdade de expressão. Daí ele passa a fechar também canais de televisão, impedir a regularização de veículos que pediram concessões.
Estas particulares são o que coloca a América Latina bem abaixo de países europeus no ranking de promoção da liberdade de imprensa?
É algo paradoxal. Quando Chávez diz que existe liberdade de expressão no país dele, de certa maneira é verdade. Mas a liberdade de expressão pode ter uma polarização extrema. Na França, por exemplo, existe uma relação tensa entre uma parte da imprensa e o presidente Sarkozy. Mas em um jornal do Partido Comunista Francês você não vai ler "Sarcozy é um ditador". Nunca. Pode ter palavras muito críticas sobre a política do presidente, mas não assim.
Já na Venezuela, você lê "Chávez é ditador", "Chávez é Hitler". Em 2008, quando houve uma crise política extrema na Bolívia, com ameaça de queda de Evo Morales, rádios da província de Santa Cruz instaram a matar "o índio". Essa é uma coisa que não se vê em outros continentes. Existe uma militância que é prova de saúde democrática, mas também pode ser um perigo. Apesar do fim da Guerra Fria, na América Latina permaneceu uma posição ideológica forte, que voltou depois dos anos de liberalismo extremo neste continente.
Houve o trauma das ditaduras, depois o trauma da entrada na globalização de maneira radical, e, depois, a chegada ao poder de uma esquerda que normalmente não governava, que sempre foi oposição. Também deve ser considerada a perda de influência dos EUA na região, sobretudo na América do Sul. Existe uma forma de militância por meio de veículos de comunicação.
Quais as perspectivas no Brasil em relação a estes temas no governo Dilma?
Houve coisas bastante positivas nos dois mandatos de Lula, como a revogação da Lei de Imprensa, de 1967, herdada da ditadura militar. Mas depois se multiplicaram medidas de censura prévia por parte de juízes, com interesses políticos evidentes em alguns estados no Brasil.
Mas no Brasil o problema é que o juiz é o filho do delegado, que é o neto do governador, que é o sobrinho do senador. São os permanentes conflitos de interesses – isso é um problema bem especificamente brasileiro. É preciso limitar que governadores, ou seus laranjas, sejam donos de seis, sete veículos de comunicação.
O sistema político brasileiro, com coligações diferentes nos estados, faz com que o interesse político seja tão forte, tão tenso, que não se pode mudar a situação porque uma parte da coligação pode ser dona de veículos de imprensa. Não é normal que os ex-presidentes Sarney e Collor, que têm parentes donos de veículos de imprensa, sejam membros da Comissão de Tecnologia do Senado Federal. Isso é inconcebível.
Entrevista: Mariana Santos
Revisão: Carlos Albuquerque