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Para tradutora, clichês prejudicam difusão da literatura brasileira

Felipe Tadeu1 de outubro de 2006

A agente literária Ray-Güde Mertin fala sobre o desafio de publicar autores de língua portuguesa na Alemanha e a versão para o cinema que Fernando Meirelles fará de "Ensaio Sobre a Cegueira", de Saramago.

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A tradutora Ray-Güde Mertin, entre João Ubaldo Ribeiro e Luis Fernando VerissimoFoto: Felipe Tadeu

Ray-Güde Mertin é uma das maiores responsáveis pela publicação de obras fundamentais da literatura de língua portuguesa na Alemanha. Seja como tradutora de livros como Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, Um Brasileiro em Berlim, de João Ubaldo Ribeiro, Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, e Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, seja como agente literária, essa alemã nascida em Marburg e hoje moradora de Bad Homburg entende de mercado editorial como poucos.

Defendendo os direitos autorais de escritores consagrados como Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, Ferreira Gullar e Antônio Callado, entre outros, ela é considerada por muitos um anjo da guarda dos nossos autores.

DW-World: Você concorda que o último grande acontecimento da literatura de língua portuguesa foi a nomeação do escritor lusitano José Saramago ao Nobel de 1998?

Ray-Güde Mertin: Concordo. Nos anos 80 e também no comecinho da década seguinte, conseguimos publicar um grande número de escritores brasileiros na Alemanha. Em 1994, quando o Brasil foi país-tema da Feira de Frankfurt, ainda conseguimos realizar um número considerável de lançamentos, mas posteriormente o interesse só caiu. É uma situação estreitamente ligada ao mercado editorial, que também mudou muito. O Prêmio Nobel para Saramago chamou a atenção para a literatura de língua portuguesa que está aí, que existe, e que permanece perfeitamente no mesmo nível de qualidade das melhores literaturas.

Em meados da década de 90, cerca de 60% das traduções feitas na Alemanha eram de originais escritos em inglês. Mudou algo?

Sim, o índice passou a ser de 70%, sendo que o francês é a segunda língua mais traduzida, com 12%. O espanhol aparece em terceiro lugar, atingindo os 3%, enquanto o português, que nos tempos áureos estava na casa do 0,5%, hoje caiu para 0,3%. Quando comecei a trabalhar com literatura, nos anos 80, na minha grande ingenuidade pensava que poderia modificar um pouco as estatísticas nessa área, na qual tenho uma certa influência, mas hoje percebo que não se trata de aumentar o espaço da literatura em língua portuguesa e sim de manter esse percentual, o que já é muito difícil.

Buchcover Ein Brasilianer in Berlin
Edição alemã de 'Um Brasileiro em Berlim'

Nos últimos anos, com todas as mudanças políticas mundiais, o mercado editorial mudou. Hoje, coreanos e chineses compram e vendem muito, e há interesse maior por outras línguas. Após a queda do muro de Berlim, a atenção estava toda voltada para o leste da Europa. Havia muita coisa a descobrir, tudo que não havia sido possível antes, e nós tínhamos medo que a América Latina ficasse um pouco esquecida. Quando você perde a atenção do mercado, é muito difícil reanimar o interesse dele depois. Faltou continuidade.

Há os best-sellers latino-americanos, mas para descobrir coisas novas e trazê-las para a Alemanha – o que a gente tenta fazer, indo todos os anos ao Brasil, por exemplo – é difícil. Acho que conheço bem o mercado editorial brasileiro, que é de uma grande riqueza, mas quando se vê o estande brasileiro na Feira do Livro de Frankfurt, não se tem a menor idéia do que é o meio editorial no Brasil. Há dois anos, uma grande editora alemã de Berlim foi à Bienal do Rio de Janeiro e ficou maravilhada com o que viu.

Que mudanças você vem percebendo no meio editorial brasileiro desde que começou a travar contato com ele?

Numa mesa redonda que fizemos recentemente com o pessoal da Feira de Frankfurt na Bienal de São Paulo, percebi que a editora Record está com um catálogo muito bom, de livros muito bem feitos, desde que Luciana Villas-Boas entrou na editora. Cerca de 60% dos livros deles são de autores nacionais, o que demonstra que há boa literatura brasileira para se apostar nela. Aliás, sempre houve. Aumentou em todas as editoras o interesse em lançar autores novos, sem se esquecer dos escritores mais conhecidos, dando-se ênfase à própria literatura brasileira. É uma tendência muito boa.

Será que a penetração da literatura brasileira na Alemanha não se torna mais difícil por sermos considerados uma "nação futebolística", que nada teria de compatível na produção intelectual?

Me ocorreu há pouco que o problema que o Brasil tem, se comparado a Portugal, é que ele está muito mais prejudicado pelos clichês. Samba, candomblé, futebol e as mulatinhas da Bahia continuam prevalecendo, enquanto que Portugal é encarado como um país à margem da Europa, coisa que a gente não agüenta mais escutar. Tudo bem que um leitor goste de Jorge Amado, que goste de ver coisas diferentes, exóticas, e queira ler algo sobre os trópicos. Não vejo problema nisso desde que não prejudique a literatura, que não a limite. O ideal seria que um livro pudesse ser aceito por ser uma boa obra literária, independentemente de sua origem geográfica. O problema é encontrar editores que pensem assim.

Como eu já disse, o mercado editorial na Alemanha passou por profundas mudanças, há muitas editoras finíssimas, de catálogos muito bons, que já não são mais independentes e que pertencem a grandes grupos. Muita gente não sabe que as editoras Rohwolt e Fischer, duas das mais tradicionais, pertencem a um mesmo grupo, ao qual pertence também a editora pela qual Guimarães Rosa publicava todos os seus livros. Os livros dele estão todos esgotados, fora de catálogo. Não há maneira de convencê-los a reeditar por aqui o Grande Sertão, Veredas para o centenário de nascimento do escritor, em 2008.

Como você, que traduziu o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, recebeu a notícia de que a obra vai ser transformada em filme, a ser dirigido por Fernando Meirelles?

Jose Saramago
O escritor português José SaramagoFoto: AP

Fui eu que negociei a venda dos direitos. Saramago não gosta de ver seus livros filmados, ele estava muito reticente, mas houve uma produtora canadense que ficava muito em cima da gente, insistindo muito. Eu falava para ela que o filme teria que ficar o mais longe possível de Hollywood (risos). Até hoje recebemos toda semana pedidos de compra de direitos de Ensaio Sobre a Cegueira, que foi e é um grande êxito nos Estados Unidos, antes mesmo de sair o Nobel para Saramago. Essa produtora canadense demorou muito para que ter o roteiro pronto, e agora estamos felicíssimos por saber que Fernando Meirelles está muito entusiasmado com esse projeto.

Fernando Meirelles queria ter estreado como diretor de cinema com esse filme.

Exatamente. Ele nos perguntou naquela época sobre a aquisição dos direitos para filmar o livro, mas ou Saramago não queria, ou a gente já estava negociando com os canadenses. Foi preciso Fernando Meirelles passar pela experiência dos outros filmes que ele fez para chegar ao Ensaio Sobre a Cegueira. Fernando vai antecipar o início das filmagens, que começarão em meados de 2007, e todos temos esperança de ver o filme pronto em 2008. O único livro de Saramago que já tinha sido filmado foi A Jangada de Pedra. Recusamos todos os outros pedidos, que continuam chegando, porque Saramago quer ver primeiro como vai ficar o filme de Fernando. Estamos planejando um encontro entre as três partes, Fernando Meirelles, Saramago e os canadenses, em Lisboa no final de outubro e vamos ver como tudo fica.

O cinema brasileiro consegue penetrar com mais facilidade que a literatura na Alemanha e em toda a Europa. Até que ponto isso realmente impulsiona o interesse do público por um determinado autor que tenha um livro levado às telas?

Mesmo com os bons filmes brasileiros que têm saído nos últimos anos, como O Invasor, Central do Brasil e Cidade de Deus, infelizmente a maioria das pessoas que assiste a esses filmes não pensa no livro.

Você já traduziu grandes escritores da literatura brasileira. Que autor você ainda gostaria de verter para o alemão?

Boa pergunta! Pensando agora, de imediato, eu gostaria de traduzir Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade. É uma beleza de livro, que eu traduziria com grande prazer.