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Libertadores

16 de março de 2010

Projeto Libertadores fará oito filmes sobre protagonistas das lutas de independência na América Latina. Deutsche Welle entrevistou cineasta Marcelo Gomes, responsável pelo roteiro e direção da película sobre Tiradentes.

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Tiradentes retratado por Pedro AméricoFoto: Maler Pedro Americo

Duzentos anos após o início das lutas de libertação na maioria dos países da América Latina, o projeto Libertadores pretende resgatar na tela o pensamento e a obra das figuras mais relevantes do processo de emancipação da região.

Além dos fatos históricos, a coletânea de oito películas, cujas filmagens, segundo os organizadores, foram iniciadas em 2008 e serão rodadas até 2012, procuram enfocar principalmente o lado mais humano e a ideologia de caráter libertador desses personagens da independência latino-americana.

O projeto da produtora Wanda Films, elaborado juntamente com a TVE espanhola e a Lusa Films, convidou renomados diretores autorais das respectivas nações latino-americanas para escrever o roteiro e dirigir o filme sobre o libertador de seu país.

Trata-se de penetrar na personalidade de cada um deles e aproximá-los do terreno da emoção, afirmam os produtores. Para isso, o argumento de cada uma das películas parte da literatura, da lenda popular, de possíveis situações fictícias que viveram, incluindo relatos de seus próprios escritos.

Os libertadores a ser retratados nas películas são: José Martí (Cuba) foi dirigido pelo cineasta Fernando Pérez; José de San Martin /Argentina) foi dirigido pelo diretor Tristan Bauer; José Artigas (Uruguai) foi dirigido pelo uruguaio César Charlone; Moreno y Mina (México) ficará a cargo de Arturo Ripstein.

Os diretores de Túpac Amaru (Peru), Bernardo O'Higgins (Chile) e Símon Bolívar (Venezuela) ainda deverão ser confirmados. O responsável pelo roteiro e direção de Joaquim José da Silva Xavier, o brasileiro Tiradentes, será o premiado diretor pernambucano Marcelo Gomes.

O roteiro foi elaborado por Gomes e pelo pesquisador de cinema mineiro João Dumans. O filme será produzido no Brasil pela REC produtores, de Recife, em associação com a Cinco em Ponto produtora, de Minas Gerais.

Em entrevista à Deutsche Welle, o diretor de Cinema, Aspirina e Urubus (2005) falou sobre sua participação no projeto Libertadores e a concepção de seu personagem Joaquim José, vulgo Tiradentes.

Deutsche Welle. Que aspecto de Tiradentes ou que aspecto da Inconfidência Mineira será tratado no seu filme?

Marcelo Gomes: Na verdade, voltando um pouco atrás na pergunta, quando José María [Wanda Films] me convidou para participar desse projeto, me veio aquela imagem de Tiradentes que, infelizmente, foi usada muito pelos regimes de direita e de esquerda como elemento político nos diferentes momentos do Brasil.

Nos anos 1970, quando eu era criança, a gente tinha uma imagem de Tiradentes quase como um Jesus. Aquela barba grande, aquele homem que deu a vida pela pátria. Devido àquela heroificação de Tiradentes construída pelos militares de direita, nós crescemos com a imagem de que ele era um elemento da direita brasileira.

Depois, com os movimentos de esquerda contra a ditadura de direita, Tiradentes também foi usado como um personagem libertário. Houve sempre então essa necessidade da direita ou da esquerda de heroificá-lo.

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Praça com monumento a Tiradentes em Ouro PretoFoto: DW

A gente sabe que não foi bem assim e que a Inconfidência Mineira foi um movimento que nem existiu como movimento, porque antes de existir foi completamente esfacelado pela Coroa Portuguesa e muitos não tiveram nem tempo de atuar.

Tiradentes foi usado como bode expiatório dessa Inconfidência, desse grupo de pessoas que estava lutando contra a Coroa Portuguesa. Então veio a história toda que a gente sabe dele: ele foi preso, depois decapitado, depois seus pedaços foram expostos em público. E foi jogado sal na casa dele, e foram desonradas as próximas gerações da família dele, enfim.

É basicamente isso o que a gente sabe da história de Tiradentes, como brasileiro mediano que somos. Então quando veio essa ideia do José María, fiquei pensando muito sobre como desenvolver um filme sobre esse personagem.

Então falei que queria fazer um filme que primeiro destruísse essa ideia do herói Tiradentes e que construísse o Tiradentes como uma pessoa comum, um brasileiro comum querendo entender o que é ser brasileiro, querendo entender o que é viver nessa vida de protético, onde ele abre a boca dos brasileiros e a partir da boca dos brasileiros, metaforicamente, ele entende melhor o que é esse processo de construção da identidade nacional e ao mesmo tempo, como alferes, como soldado da Coroa Portuguesa, servindo à Coroa, ao colonizador, ao opressor.

Tiradentes tinha então essa dupla personalidade profissional. E eu acho que isso é o que me interessa: fazer um filme não sobre a Inconfidência Mineira, mas fazer um filme sobre a construção da consciência política deste brasileiro Tiradentes.

A partir daí, decidimos fazer uma grande pesquisa de época sobre o personagem Tiradentes, sobre a época em que ele viveu. Descobrimos coisas fantásticas, maravilhosas, porque, com a descoberta do ouro em Minas Gerais, houve para aquela região a maior migração já vivida nas Américas. Foi maior do que a migração com a descoberta do ouro na Califórnia.

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Ouro Preto se tornou maior cidade das Américas no século 18Foto: DW

Ou seja, 200 mil pessoas se deslocaram para a região das Minas Gerais. E eram escravos negros de várias regiões da África, eram espanhóis, portugueses e outros de várias regiões da Europa, como também brasileiros de várias regiões do país, da Bahia, de Pernambuco, de São Paulo, do Rio de Janeiro. Então, na verdade, Ouro Preto aglutinou esse caldo cultural de pessoas e se tornou a maior cidade do continente.

Para mim, interessava muito mais fazer um filme sobre esse personagem, sobre esse brasileiro comum, esse Tiradentes, alferes e protético, vivendo essa vida nas Minas Gerais, do que um herói independente e libertário.

E por isso mesmo a gente decidiu fazer um recorte do filme onde a gente trata da vida de Tiradentes exatamente nesse período. É o período em que ele começa a ser militar da Coroa Portuguesa e viver esses dilemas, como opressor e oprimido ao mesmo tempo, tratando também da construção da consciência política do Joaquim José, que é o nome de Tiradentes. Tanto que a gente não usa o nome de Tiradentes em nenhum momento do filme, e o chama de Joaquim José.

O seu Tiradentes, ou melhor, o seu Joaquim José tinha consciência de que se estava formando uma consciência?

Isso é uma coisa muito interessante porque, a partir dos livros que a gente leu, a primeira vez que essa consciência aparece de forma clara e se concretiza como um discurso é justamente após a independência dos EUA. Com a Constituição Americana, eles começam a pensar o que significam as palavras "os nativos da terra".

Não existia nem essa consciência de brasileiro, eles chamavam "os nativos da terra". Então essa ideia que veio através da independência dos EUA começa a se impregnar no Brasil, a necessidade de os nativos da terra terem também o poder político daquela terra.

Não podemos esquecer que por trás da independência estavam homens ilustres das Minas: ouvidores, fazendeiros, padres, militares, que em algum momento ocuparam ou pretendiam ocupar importantes posições na capitania, fosse por meio do exercício do poder político ou financeiro. Esse desejo, aliado ao pensamento esclarecido, iluminista, que chegava sobretudo por meio dos livros, gerou um ambiente favorável para o despertar de uma certa "consciência" nos homens da colônia. Joaquim José, embora não pertencesse a essa "elite intelectual", viveu em contato estreito com ela.

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Tiradentes: cidade natal de Joaquim José da Silva XavierFoto: DW

E assim começa esse processo de revolta contra a Coroa Portuguesa, que é aliado também a um processo de decadência econômica das Minas, onde a Coroa Portuguesa passa a exigir cada vez mais impostos em relação ao ouro. E ouro está escasseando e esse processo de decadência econômica desencadeia ainda mais essa revolta política e essa necessidade de compreensão desse termo que eles usavam na época que era "os nativos da terra".

Que caráter de brasileiro você vai dar a Tiradentes?

A gente fez uma grande pesquisa, porque existem muito poucos documentos sobre Tiradentes. Tiradentes não fazia parte da elite monetária nem intelectual. Ele era um brasileiro comum. Então a história é muito ingrata com os brasileiros que são dessa origem.

A gente fez uma pesquisa sobre todos os documentos que existiam sobre ele. Havia pessoas que diziam que ele era uma pessoa simples, tranquila, que falava pouco, muito recatado. Outras pessoas diziam que ele era um fanfarrão, que falava alto, que gritava muito, tinha aparência de louco, muito cachaceiro e mulherengo.

A gente leu de tudo. Depois dessa leitura, decidimos construir o nosso Tiradentes. E o nosso Tiradentes era essencialmente bem brasileiro. Ele tinha esse elemento de humor muito grande, peculiar ao brasileiro. Ele era uma pessoa que gostava de festas, que é outra característica nossa.

Mas também era uma pessoa que tinha uma relação muito afetiva com o Brasil, muito afetiva com as pessoas do país e uma pessoa de extrema curiosidade, curiosidade sobre a leitura, sobre os livros, curiosidade de descobrir as coisas. E, a partir dessa curiosidade, ele é levado a construir a necessidade de se rebelar contra os mandos da Coroa Portuguesa.

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Chafariz de 1749 em Tiradentes: escravos e animais só podiam usar parte lateralFoto: DW

No Brasil, falou-se muito sobre os 200 anos da vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro. Na Europa, fala-se muito sobre o bicentenário do início das lutas de independência da América Latina. Até que ponto esse é um tema também presente no Brasil?

O Brasil tem um histórico completamente peculiar em relação ao resto de todos os países da América. Todos os países americanos se tornaram independentes a partir de guerras, revoltas construídas pelos nativos da terra contra os desmandos da Coroa Espanhola.

No Brasil, foi exatamente diferente. Com a chegada da família real, Dom João 6° começa a construir uma relação de amizade entre Portugal e Brasil. Até que ele deixa um recado para o filho: "Filho, estou voltando para Portugal, mas se um aventureiro quiser decretar a independência, você faça isso primeiro". E é exatamente isso que Dom Pedro 1° faz, ele decreta a independência do Brasil.

O Brasil declarou a independência sem derramar uma gota de sangue e quem declarou a independência foi um português, não um brasileiro. Então, isso é um elemento muito peculiar: a chegada de Dom João 6° foi o momento onde a relação Brasil-Portugal mudou porque a Coroa Portuguesa virou colônia e o Brasil tornou-se a sede da Coroa, já que o rei estava aqui.

O Tiradentes foi anterior a isso. Ele foi muito anterior a tudo isso. Ele foi esquecido por muito tempo, porque houve esse libertador português e só na república, só com o fim da era imperial no Brasil, ele é restaurado pelos militares da república, ele é restaurado pelos movimentos de esquerda que acontecem posteriormente e, mais tarde, pelos movimentos de direita com os militares.

Ele é sempre restaurado em momentos que serviam para a direita ou para a esquerda. Então por isso talvez esse distanciamento do próprio brasileiro em relação à figura de Tiradentes. E que agora com esse filme, restaurando o personagem comum e nenhum herói, eu acho que é uma forma de a gente fazer as pazes com esse herói, que de uma forma ou de outra retratava muito o regime militar quando eu era jovem.

Autor: Carlos Albuquerque

Revisão: Roselaine Wandscheer