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Que país é esse?

18 de outubro de 2018

O Brasil passa por tempos difíceis: agressões nas redes e nas ruas, crise econômica, medo do futuro e incerteza. Mas existe a música brasileira: uma constante fonte de renovação e resistência, lembra Philipp Lichterbeck.

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Brasilien Karneval in Rio
Foto: Getty Images/AFP/A. Scorza

São tempos sombrios. Os brasileiros estão muito brigados entre si, a economia definha, e o Hexa ainda não chegou. E aí, ainda por cima, o próximo presidente quer jogar o país 40, 50 anos no passado. Sim, foi isso mesmo o que ele disse. E talvez nem seria tão ruim, pois aí os brasileiros não teriam mais paus de selfie. E certamente não haveria atores pornô na Câmara dos Deputados.

Para não ficar depressivo em meio a toda esta miséria - e a miséria ainda maior que está por vir - gosto de lembrar de uma das razões que torna este país realmente grande e excepcional. Não, não é a Seleção, nem o Cristo Redentor, nem a liderança mundial na exportação de suco de laranja.

É a música brasileira e a fantástica musicalidade dos brasileiros. Sempre é ruim generalizar, mas neste caso acho justificado. A maioria dos brasileiros sabe dançar, tem ritmo, sabe tocar instrumentos, sabe e gosta de cantar, conhece pelo menos 150 canções de cor: sambas e forrós, e, claro, também bossa-novas, pagodes, sertanejos, lambadas, musicas de rock nacional, MPB, funk e reggae maranhense. Isso, fora dos infinitos estilos mais regionais: xaxado, pé de serra, coco, baião, axé, frevo, jongo, maxixe (o tango brasileiro!), etc..

Só pronunciar esses últimos gêneros já soa como uma oração ou uma poesia. E, de fato, a música brasileira é um veículo de poesia. Como os versos simples e engraçados deste jongo:

"Eu vim de lá de cima / Encontrei um tatu deitado / Perguntei o que ele tinha / O tatu tá de fogo que tá danado."

Jornalista alemão Philipp Lichterbeck
Jornalista alemão Philipp LichterbeckFoto: Privat

Num país em que, décadas a fio, milhões de brasileiros não sabiam ler nem escrever, a música virou a poesia dos pobres. E a literatura do povo. Nela se registrou a realidade social do Brasil. Luis Gonzaga nos fala do Nordeste. O samba nos fala das favelas. Como Lupicínio Rodrigues em O morro está de luto.

O morro está de luto / Por causa de um rapaz / Que depois de beber muito / Foi a um samba na cidade / E não voltou mais. / Entre o morro e a cidade / A batida é diferente / O morro é pra tirar samba / A cidade é pro batente.

A música foi escrita há 65 anos. Mas não mudou tanto neste país. O funk de hoje, às vezes, fala dessa realidade, porém com outras palavras e com outras batidas.

Mas fica claro que a música brasileira muitas vezes é mais que música. Ela é profunda. Ela não é retórica como tantas músicas comerciais americanas. Ela não é sentimental, ela é sentida. Ela é verdadeira. Ela é apaixonante.

E não é coincidência que um dos maiores músicos brasileiros, Chico Buarque, também seja escritor. Em cinco curtas frases da composição Construção, ele é capaz de contar uma novela:

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado / E flutuou no ar como se fosse um pássaro / E se acabou no chão feito um pacote flácido / Agonizou no meio do passeio público / Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

A música brasileira fala da desgraça e da sorte de ter nascido num dos países mais ricos e mais pobres desta Terra. No país mais bonito que, às vezes, é tão feio. No país mais generoso e mais mesquinho. No país mais amoroso e mais violento.

E no país onde a sensualidade, a sexualidade viraram filosofias de vida. De que outro país poderiam vir esses versos de Rita Lee?

Amor sem sexo é amizade / Sexo sem amor é vontade / Amor é um, sexo é dois / Sexo antes, amor depois

Simples, brincalhões, sinceros. E na música que reside a sensibilidade, a sabedoria, a dor e o humor desse país.

Um dos pontos fortes da música brasileira é sua constante força renovadora. Há tantos músicos relativamente novos fantásticos com mensagem, conteúdo e furor: Bia Ferreira, Liniker, Francisco, el Hombre, Luedji Luna, Xenia França, Rubel, Picanha de Chernobil, só para ficar em alguns.

Outro forte da música brasileira é que ela sempre tem se mantido independente do grande imperialista cultural Estados Unidos. Precisamente na música, o Brasil manteve a sua autonomia cultural. Algo de que os brasileiros realmente deveriam se orgulhar.

Até porque os músicos brasileiros, na maioria dos casos, souberam que o papel do artista não é agradar aos poderosos, mas resistir. A pergunta constante sempre deve ser: Que país é esse?

Um verso dessa música de Legião Urbana é mais atual que nunca: Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos faturar um milhão / Quando vendermos todas as almas / Dos nossos índios num leilão. Só parar lembrar: o próximo presidente quer abrir a Amazônia para exploração. 

O que mais me surpreende é a facilidade com que os brasileiros se juntam espontaneamente para fazer música. Sempre parece superfácil, quase gravidade zero. Como o som do Hô-bá-lá-lá de João Gilberto, pairando como uma pena. Acho especialmente lindo o jogo com as vogais, tão frequente no português falado: "ué", "uai", "ah-é", "iiih". Às vezes, as próprias vogais se tornam música, como na famosa introdução de Mas que nada.

"Ô... ariá-raiô / Obá, obá, obá"

É claro que tanto essas interjeições quanto os ritmos são originários da África. No Brasil, eles se combinaram e mesclaram com influências europeias e indígenas. Em nenhuma outra área o caráter simbiótico do país se expressa melhor do que em sua música: nela fica evidente todo o poder da miscigenação cultural.

Tantos brasileiros tem uma ligação íntima com a música, ela é uma atividade do povo, e isso é que distingue os brasileiros também dos alemães, para quem fazer música e dançar muitas vezes é uma atividade séria e complicada.

Para os brasileiros, porém, a música é uma experiência comunal, como na típica roda de samba. Pois, como já diz o nome, trata-se de uma roda, para formá-la bastam um cantor, um violão e um instrumento de percussão. Mas tantos músicos e espectadores quanto quiserem também podem se juntar. Essa abertura torna uma roda de samba uma das experiências mais bonitas que se possa ter no Brasil. E, no melhor dos casos, dissolvem-se aí algumas das diferenças em que os brasileiros estão tão fixados no momento.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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