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Shake na língua de Rilke

13 de abril de 2011

Tradução exigiu alta criatividade para recriar em alemão os jogos sonoros e contextuais do humor da gaúcha Angélica Freitas, que tem se mostrado uma das mais polêmicas da nova geração de poetas brasileiros.

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Após "Rilke Shake", Angélica tornou-se presença frequente em festivais de poesiaFoto: Adriane Santi

Entre os poetas brasileiros surgidos na última década, a gaúcha Angélica Freitas (Pelotas, 1973) é sem dúvida uma das mais lidas e discutidas no Brasil desde a sua estreia com o pequeno volume Rilke shake, publicado em 2007 pela editora paulistana Cosac Naify.

De fato, os números relacionados à venda de poesia têm parâmetros muito distintos dos registrados nas listas dos mais vendidos de ficção e não-ficção. Tão mais admirável, em um país como o Brasil, no qual a primeira (e frequentemente única) tiragem de um livro de estreia de um jovem poeta raramente ultrapassa os 500 exemplares, que o livro de Angélica Freitas tenha esgotado em pouco mais de um ano sua primeira tiragem de 1.500 exemplares.

A poeta tornou-se nome frequente nos mais prestigiosos e alternativos festivais literários do Ocidente, tendo participado tanto em feiras nacionais, como a Flip de Parati, quanto internacionais, como o Poesiefestival Berlin, um dos maiores festivais de poesia da Europa, além de encontros de poetas em Buenos Aires, Santiago do Chile, Cidade do México e Bucareste.

Recentemente foi lançado na Alemanha um volume com traduções de obras da gaúcha, incluindo a grande maioria dos poemas de seu primeiro livro e outros poemas esparsos, publicados desde então em revistas e antologias internacionais. Com o título Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte, o volume integra a coleção Luxbooks Latin, da editora Luxbooks, que já publicou os argentinos Sergio Raimondi e Fabián Casas, este último vencedor do Prêmio Anna Seghers em 2007.

Nada de boa moça

Brasilien Dichterin Angelica Freitas Rilke Shake
Capa da edição brasileiraFoto: CosacNaify Editora

A tradução de Odile Kennel tem excelentes momentos de criatividade para recriar em alemão alguns dos jogos sonoros e contextuais do humor da poeta gaúcha. Afinal, a poesia de Angélica Freitas tem se provado uma das mais polêmicas da nova geração.

Recorrendo a técnicas da poesia satírica internacional, que tem no Brasil sua tradição marcada desde Gregório de Matos, passando por poetas do século 19 como Sapateiro Silva e Qorpo-Santo, a mescla que ela faz entre o lírico e o satírico, com uma clara intervenção crítica nos debates de gênero e sexualidade no Brasil, gera tanto admiração quanto mal-estar entre os acadêmicos da nossa literatura contemporânea.

Para a crítica poética brasileira, que nos últimos 20 anos se acostumou ao bom-tom de moços e moças bem educados e lidos, torna-se em certos casos difícil decidir sob que parâmetros julgar criticamente os versos de Angélica Freitas.

Mas sua poesia poderá soar até familiar para um leitor alemão, devido à larga tradição da poesia satírica moderna no idioma, com autores como Christian Morgenstern, Paul Scheerbart, Hans Arp e Kurt Schwitters, e também poetas do pós-Guerra, como a alemã Elisabeth Borchers e os austríacos H.C. Artmann e Ernst Jandl.

Entre o lírico e o satírico

Brasilien Dichterin Angelica Freitas
Mescla entre o lírico e o satírico gera admiração ou mal-estarFoto: Adriane Santi

A poesia de Angélica Freitas consegue muitos de seus efeitos mais fortes ao criar uma conjunção interessante e eficiente entre o lírico e o satírico, baseando-se muitas vezes na tática da autodepreciação, lançando sobre si mesma a língua ferina.

Ela é também precursora no Brasil da prática que já chamamos de "googlagem", renovando a colagem dadaísta e mostrando que, apesar de sermos diagnosticados como vivendo num período “pós-utópico”, muitos autores contemporâneos ainda recorrem a estratégias ligadas às primeiras vanguardas históricas, como o Dadaísmo e o Surrealismo.

Autora que conhece e lê poesia em espanhol, inglês e alemão, tendo vivido em países destas línguas, Angélica apresenta um trabalho que passa ao largo do nacionalismo típico da poesia modernista, recorrendo por vezes a uma mescla de idiomas para melhor alcançar seus efeitos.

Poucos poetas brasileiros das últimas décadas usaram a rima com tamanha graça e inteligência. Seus poemas funcionam na página e na voz, pois são compostos de forma tesa em sua sonoridade, mesclando palavras "nobres" a expressões populares, fazendo jus à declaração de Ezra Pound, segundo o qual não devemos nos esquecer de que a poesia surgiu com o propósito primordial de “alegrar o coração dos humanos”.

Abrindo caminhos para a poesia

Buchcover Rilke Shake Angelica Freitas Brasilien
Capa da edição alemã

O sucesso de seu trabalho pode ainda indicar quais caminhos estão abertos aos poetas, com papéis que não foram tomados pela prosa. Através da poesia satírica, por exemplo, seria até mesmo possível que o poeta mantivesse seu papel social dentro da comunidade, mas para isso seria necessário questionar a hegemonia do mito ideológico romântico do poeta como marginal, outsider, que escreve “para ninguém”.

A ideia de uma poesia que seja obrigatoriamente difícil, que é "escrita para ninguém" e não cede às "exigências das massas e do público", é um mito ideológico criado em grande parte pelos poetas românticos, pressionados a se encaixarem nas transformações sociais que se agitaram após a Revolução Francesa, quando exigiu-se deles que revissem a que classe pertenciam ou a quem deviam lealdade. Em suma, quem pagaria as suas contas.

A poesia não é produto de troca ou venda, mas sempre teve funções sociais aliadas a suas formas, desde que surgiu. Após anos em que os poetas brasileiros tentaram seguir os passos do antilírico a partir da obra de João Cabral de Melo Neto, jovens poetas hoje voltam a arriscar-se e ousar querer emocionar e divertir seus leitores. Muitos deles agora agradecem com a simples homenagem que é comprar um livro de poesia.

Autor: Ricardo Domeneck
Revisão: Rodrigo Rimon

Ricardo Domeneck é um poeta brasileiro e vive em Berlim. É o autor de Carta aos anfíbios (Bem-Te-Vi, 2005) e cadela sem Logos (Cosac Naify, 2007).