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"Um negro não deve ser chamado para um filme só pela cor"

30 de junho de 2020

Em entrevista, o brasileiro João Paulo Miranda Maria fala sobre seu longa "Casa de Antiguidades", selecionado pelo Festival de Cannes e estrelado por Antônio Pitanga. "O filme tem tudo a ver com momento atual."

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Antônio Pitanga e João Paulo Miranda Maria durante as filmagens de "Casa de Antiguidades"
Antônio Pitanga (esq.) e o cineasta João Paulo Miranda Maria durante as filmagens de "Casa de Antiguidades"Foto: Divulgação/Carlos Eduardo Carvalho

Racismo. Uma grande crise econômica. Autoridades que flertam com o autoritarismo. Isolamento. Um protagonista idoso e potencialmente vulnerável. Com todos esses elementos, o filme brasileiro Casa de Antiguidades, um dos 56 longas selecionados pelo Festival de Cannes em 2020, até parece ter sido inspirado nos acontecimentos deste ano.

Foi uma coincidência, é claro. Mas o mundo real vem dando uma forcinha para que a obra do paulista João Paulo Miranda Maria ganhe repercussão no meio cinematográfico internacional, sobretudo depois do anúncio da seleção oficial do prestigiado prêmio francês.

Casa de Antiguidades é o primeiro longa-metragem da carreira do cineasta de 37 anos, natural de Porto Feliz, no interior de São Paulo. No papel principal, Antônio Pitanga vive um trabalhador de uma empresa de laticínios que, do interior de Goiás, é obrigado a se transferir para uma cidade no sul do país. Na nova localidade, sofre toda a sorte de preconceitos. "No roteiro, defini [o personagem] como um homem brasileiro cheio de marcas do tempo no corpo", comenta Miranda Maria.

Antes do reconhecimento neste ano, o jovem cineasta já havia faturado o prêmio especial do júri de Cannes em 2016, por seu curta A Moça Que Dançou com o Diabo. À DW Brasil, ele afirma que busca um cinema autoral com uma linguagem que remete às suas origens.

"Um cinema caipira", define Miranda Maria, que desde o ano passado vive em Paris com a mulher e os dois filhos. "Tenho minhas cafonices, minhas coisas bregas, coisas que me pertencem e que não são de um senso comum ou de uma tendência. Busco a beleza bruta para o meu ponto de vista. Quando ligo a câmera, não estou filmando o outro – estou filmando a mim, a câmera é como se fosse um espelho para me ver."

João Paulo Miranda Maria
"A câmera é como se fosse um espelho para me ver", diz o cineasta João Paulo Miranda MariaFoto: Privatarchiv João Paulo Miranda Maria

DW Brasil: Como foi, para um "caipira" morando em Paris, ter o longa na seleção oficial de Cannes?

João Paulo Miranda Maria: Foi uma grande surpresa. Imaginar que é meu primeiro longa, estou estreando e já nessa coisa entre os grandes nomes da história do cinema… Não é uma coisa simples. Foi incrível e fiquei super feliz. Mas tem o meu lado caipira, pé no chão, que pensa e repensa toda hora. Então eu vejo que é só um começo e que coisas muito maiores ainda estão por vir, e eu quero fazer. [Por conta da pandemia de covid-19, o festival] este ano vai ser diferente. Não vão ocorrer as sessões físicas, nem jurados para avaliar. Não vai ter competição, apenas o reconhecimento como seleção oficial. E devem ser feitas parcerias com outros festivais, para que esses filmes inéditos possam estrear.

O roteiro já estava pronto em 2015, mas acabou abordando muitos temas deste esquisito ano de 2020. Já falaram que seu filme acabou ficando profético?

Com certeza. O filme vem como uma bomba, um canhão. É muito forte e visceral e tem tudo a ver com o que está acontecendo hoje em dia. E o protagonista é de 80 anos, ou seja, seria colocado nessa idade frágil como as principais vítimas da covid, essas que estão sendo ignoradas no Brasil pelo tipo de governo e atitudes de liberação, de não confinamento, de não adotar uma política clara para controlar a pandemia.

Podemos definir Casa de Antiguidades como um filme sobre racismo?

Interessante é que em nenhum momento, no roteiro, eu descrevia o personagem como alguém negro. Eu pensava em alguém negro, mas não via nenhuma importância em descrevê-lo assim. Dizia apenas que era um homem brasileiro, do interior de Goiás, cheio de marcas do tempo que ele carregava no próprio corpo, no seu olhar e na sua força bruta.

Quando me perguntaram quem eu imaginava para o papel, eu falei que gostaria do Antônio Pitanga. Aí todo mundo estranhou. No Brasil, quando você coloca um negro como protagonista, o filme fica rotulado como se fosse cinema do movimento negro. Como não sou negro, e tem muito essa discussão sobre lugar de fala e tal, eu também tento saber como responder a essa situação, porque ao mesmo tempo o filme tem muita coisa pessoal minha. Não é apenas alguém querendo entrar num tipo de discussão. O filme me pertence completamente.

Eu cresci num lugar muito conservador, religioso, tradicionalista, cheio de preconceitos. Minha primeira namorada era negra: quando eu fui apresentá-la à família, era uma festa de aniversário, depois do parabéns ela me beijou, e minha avó se levantou, quis limpar minha boca com um guardanapo. São coisas duras de falar e que estão mexendo com coisas internas muito fortes que ficaram entaladas.

O fato de o filme ser encarado como uma bandeira antirracista limita ou amplia as interpretações possíveis a respeito da sua obra?

É muito bem-vindo se o movimento negro e se pessoas como o Pitanga virem esse filme como algo importante e levantarem uma bandeira. O que não gostaria é de tomar uma certa frente, como se eu fosse uma liderança. Prefiro estar ali, apoiar e oferecer esse filme como uma bandeira, se assim lideranças do movimento negro aceitarem. Vejo uma responsabilidade muito grande, porque acontecem fortíssimas discussões. Mas são várias temáticas que surgem, e o filme vai contemplar várias delas. Uma coisa que aparece é a visão machista do Brasil. Não é uma coisa rotulada, gratuita, simplificada, é algo mais complexo, muito mais ao fundo. Isso é interessante. Vai criar discussões e eu preciso ter coragem de estar nesses espaços.

Por que Antônio Pitanga era o ator ideal?

Antes de tudo, acho que tanto o Pitanga quanto qualquer ator negro, qualquer talento negro, não deve ser chamado só por uma questão de cor, e sim pelo talento mesmo que exista. E eu não veria nenhum outro ator que tivesse essa descrição que eu falei, esse brasileiro com a marca do tempo. Pitanga traz nas costas a história do cinema brasileiro. Foi o homem que esteve no único filme brasileiro que ganhou a Palma de Ouro [O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, em 1962], esteve no primeiro longa do Glauber Rocha [Barravento, de 1962] e em vários outros filmes do Cinema Novo.

Colocá-lo em meu primeiro longa é um jeito de eu conseguir dialogar com os grandes nomes do cinema brasileiro. E eu digo que o que ele fez nesse filme vai surpreender muita gente, porque nos últimos anos ele é mais conhecido como o pai da Camila [Pitanga, também atriz]. Eu quis o Pitanga por toda a carreira nas costas dele, esse peso invisível que está em sua pele, que está dentro dele. Para cutucar e trazer essa coisa visceral de dentro dele.

Casa de Antiguidades se passa em que época?

O filme foi todo pensado de um jeito justamente para confundir. A gente tem uma sensação, pela direção de arte e pelos objetos, de algo dos anos 1970, como se fosse algo de anos atrás, é quase um futuro meio retrô. Talvez esta seja outra questão profética, quase apocalíptica, como se esses movimentos mais conservadores ganhassem cada vez mais força e começassem a transformar o Brasil num país que a gente não reconhece. O filme é isso: você vai se sentir como se estivesse entrando num outro Brasil, que não é o Brasil que a gente conhece.

Como é ser um artista brasileiro morando fora do Brasil, olhando de fora para dentro?

Acaba sendo um olhar privilegiado, porque estando aqui fora talvez sofra menos pressão. Também o sofrimento é maior, porque fico antenado com as notícias de lá. Mas tenho uma certa segurança e liberdade de continuar com meus projetos e pensar o Brasil. Espero continuar falando sobre o Brasil.

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