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Uruguai

29 de novembro de 2011

Transcorridos 26 anos desde o retorno da democracia no país, o Uruguai não adotou ainda uma conduta clara em relação às violações dos direitos humanos ocorridas durante a ditadura.

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'Os desaparecidos não foram esquecidos': performance do Museu da Memória, em MontevidéuFoto: AP

No dia 24 de agosto último, uma notícia surpreendeu os uruguaios: o ministro da Defesa, Eleuterio Fernández Huidobro – ex-comandante guerrilheiro tupamaro – reuniu-se com militares e disse que as denúncias perante a Justiça, relativas aos delitos ocorridos durante a ditadura, teriam "um fundo político". A declaração foi dada em meio a um cenário extremamente complexo, no qual estão envolvidos tanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto o governo e a Suprema Corte de Justiça uruguaios.

Tudo gira em torno da Lei de Caducidade e Pretensão Punitiva do Estado, aprovada pelo Parlamento em dezembro de 1986, com votos dos tradicionais partidos Colorado e Nacional, que então dominavam o sistema político. Esta chamada "Lei da Impunidade" por seus críticos, estabelece a caducidade, ou seja, a prescrição do "exercício da pretensão punitiva do Estado, no que diz respeito aos delitos cometidos até o dia 1° de março de 1985 por funcionários militares e policiais, por motivos políticos ou em  situações de cumprimento de suas funções e em resposta a ações ordenadas por superiores".

Em novembro de 2009, o ex-presidente Julio María Sanguinetti afirmou que a lei teria cumprido a finalidade de "compensar" a lei da anistia para os guerrilheiros. Os militares, acrescentou Sanguinetti, sentiram-se traídos: eles haviam passado o poder através de um acordo; não havia sido prometido nada, mas também não havia sido anunciada uma anistia aos tupamaros. "A anistia da guerrilha veio e então nos deparamos com uma dualidade moral: para os que quiseram derrubar a democracia, o perdão; para os que primeiro a defenderam e logo a sequestraram, o paredão", argumentou Sanguinetti.

Sua posição foi criticada em diversas oportunidades, sobretudo pela equiparação da guerrilha tupamara e de outras ao terrorismo de Estado, uma postura considerada a versão uruguaia da "teoria dos demônios" [corrente de pensamento, na Argentina, que justifica a repressão violenta do Estado durante a ditadura como contraponto à suposta violência praticada pela guerrilha urbana]. Uma conduta que vai de encontro ao princípio de que o Estado nunca, por motivo algum, pode violar os direitos humanos, sendo justamente responsável por protegê-los.

Quinze anos sem intenção de punir

A Lei da Caducidade impediu por 15 anos – durante três governos consecutivos – o processamento das culpas pelos delitos cometidos pela repressão durante a ditadura (1973-1985). A intenção original – declarada abertamente durante o processo de aprovação da lei – foi evitar um eventual desacato dos militares citados a depor perante a Justiça.

Präsident von Uruguay José Mujica beim Staatsbesuch in Deutschland
José MujicaFoto: DW/E.Romero-Castillo

A lei deixou a cargo dos presidentes a responsabilidade de tornar possível a ação da Justiça de caso para caso. Julio María Sanguinetti (durante os períodos de seu governo) e logo depois Luis Alberto Lacalle bloquearam durante 15 anos toda denúncia feita neste contexto.

Jorge Batlle (2001-2005) rompeu com esta regra e permitiu um julgamento: o do ex-ministro das Relações Exteriores da ditadura Juan Carlos Blanco, em 2002, condenado pelo desaparecimento de uma professora. Mais tarde, ele seria também condenado por outros quatro assassinatos. Durante a presidência de Tabaré Vázquez, que assumiu o governo em 2005, o Executivo começou a apurar mais denúncias.

A inexistência de processados castrenses durante 15 anos prova a imunidade não escrita com que contaram os militares durante tão longo tempo.

Dois presidentes de esquerda, duas linhas de conduta

Entre 1973 e 1985, um total de 116 pessoas foram mortas e 172 desapareceram durante a ditadura no Uruguai. A maioria delas eram líderes e militantes políticos ou sindicalistas. Apenas algumas entre estas vítimas faziam parte de grupos de guerrilheiros, já derrotados militarmente e presos durante o governo constitucional anterior.

Encabeçado pelo presidente Tabaré Vázquez (2005–2010), o primeiro governo da Frente Ampla (uma coalizão de esquerda formada por 26 agrupamentos políticos, entre partidos e movimentos), abriu as portas para o julgamento dos militares. Até agora, foram condenados dois civis e 18 militares e policiais. Outros cinco integrantes das Forças Armadas estão sendo julgados.

Entre os condenados estão os ex-presidentes Juan María Bordaberry, acusado de atentado contra a Constituição e de homicídio; e Gregorio Álvarez, acusado de ser responsável por desaparecimentos forçados e diversos homicídios.

Paradoxalmente, o segundo presidente de esquerda, José Mujica — outro ex-líder guerrilheiro, que assumiu o poder em 2010 —, embora não tenha deixado de abrir processos, estendeu a mão ao defensores da lei, na tentativa de fechar as lacunas do passado. Mas o presidente está praticamente sozinho: sua política é repudiada por todos os partidos da Frente Ampla, inclusive pelos membros de sua ala.

Tentativas fracassadas de derrubar a Lei da Caducidade

Em maio de 2011, uma proposta da Frente Ampla de anular a Lei da Caducidade, rejeitada por Mujica, foi aprovada pelo Senado, mas não levou os votos necessários na Câmara dos Deputados, justamente por causa da saída de um deputado da Frente Ampla aliado a Mujica.

Juan Maria Bordaberry
Juan Maria BordaberryFoto: AP

A Lei da Caducidade não pode tampouco ser anulada através de uma consulta popular, pois já foi submetida duas vezes a um referendo, em 1989 e em 2009. No referendo de 1989, pôs-se em votação sua suspensão completa. O "não" saiu vitorioso, com 57% dos votos. Na consulta popular de 2009, colocou-se em votação os artigos centrais de número 1º a 4º da lei. Exatos 47,98% dos votantes optaram pela abolição dos respectivos artigos. A proposta foi, portanto, rejeitada, já que eram necessários mais de 50% dos votos para aprová-la.

Decisões e revisões

A Lei da Caducidade também não tem tido um caminho fácil dentro do Judiciário. Em maio de 1988, a Suprema Corte de Justiça decidiu pela primeira vez sobre a lei, rejeitando sua inconstitucionalidade em um quórum dividido: dos cinco membros do corpo, três opinaram dizendo que ela era constitucional, enquanto dois sustentaram que ela era inconstitucional.

Em 2009, depois de consultar os poderes Legislativo e Executivo, a Suprema Corte de Justiça revisou sua decisão anterior e declarou, desta vez por unanimidade, a inconstitucionalidade da lei. No entanto, a Corte considera prescritos os delitos cometidos até 1° de novembro de 2011. Isso implica que não será possível iniciar novos processos judiciais contra os crimes da ditadura depois desta data.

Em março de 2011, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que o Estado uruguaio devesse suspender por completo a Lei de Caducidade e Pretensão Punitiva, já que esta "pode impedir ou colocar obstáculos na investigação de eventuais sanções aos responsáveis por graves violações dos direitos humanos" cometidos durante a ditadura.

Reviravoltas, mas sem fim à vista

Organizações ligadas às vítimas reclamam agora perante o governo o cumprimento do ditame da CIDH que, mesmo sendo reconhecido pelo Executivo, só está sendo acatado parcialmente.

Tabaré Vázquez, Präsident von Uruguay
Tabaré VázquezFoto: AP

Tratando de cumprir a resolução da Corte, Mujica revogou as decisões dos governos anteriores, para as quais foi aplicada a Lei da Caducidade, em relação a denúncias de violações dos direitos humanos. E publicou uma lista de 143 causas judiciais denunciadas por 475 vítimas em 24 julgamentos. Até agora, há dois civis e 20 militares sendo processados.

Está sendo também planejada para este ano a realização de um ato público, onde os três poderes reconhecerão a responsabilidade do Estado uruguaio frente aos crimes contra a humanidade cometidos no país. Sem dúvida, falta, contudo, cumprir com a essência da sentença da Corte Interamericana: anular a própria Lei da Caducidade para poder investigar as causas das violações dos direitos humanos.

A Anistia Internacional considera que a decisão da Alta Corte uruguaia de declarar os delitos cometidos durante a ditadura militar como homicídios "é contrária ao Direito Internacional, que permite a aplicação da prescrição e abre um precedente perigoso para futuros casos, que tenham a ver com o Direito Internacional, e poderiam também ficar sob ameaça de prescrição".

Diversas ONGs estão decididas a apresentar agora, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, todos os casos de desaparecimento forçado, homicídio político, torturas e demais violações dos direitos humanos, cuja prescrição seja permitida pelo Estado uruguaio. O final deste longo processo ainda está, contudo, em aberto.

Autor: Pablo Kummetz (sv)
Revisão: Roselaine Wandscheer