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"Viver no Nordeste é um exercício diário de inteligência"

Soraia Vilela6 de maio de 2004

Leia abaixo entrevista exclusiva de Tom Zé à DW-WORLD:

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DW-WORLD: Você esteve pela última vez na Alemanha em 1995 e só voltou agora. Por que essa pausa tão longa?

Tom Zé: A demora de voltar aqui se deve um pouco à minha idade. Tenho 67 anos e a viagem é muito pesada. Sempre tento evitar, mas tenho saudades daqui, principalmente depois que descobri que a Alemanha é como é, e os alemães são como são. Tem muita coisa da cultura brasileira, que fica com um braço aqui. Essa coisa mágica e mítica, que o historiador romano Tácito conta em Germânia: quando os legionários iam tentar dominar essa região da Europa, eram derrotados não só pela valentia e pela capacidade de defesa do povo, mas por esses vales, esses pantanais. Na minha terra, no meu pequeno Brasil do Nordeste, acontece uma coisa semelhante: quando o Exército foi brigar contra Antônio Conselheiro, defendendo entre aspas a tal da República, foi derrotado pelo ambiente e pelo jeito de lutar dos nativos. Aqui na Alemanha, muito antes, aconteceu a mesma coisa.

Outra associação entre Brasil e Alemanha, por exemplo, se deu através do Max Bense, de Stuttgart, que tem uma ligação muito grande com a cultura de São Paulo, com a poesia concreta. Sua Pequena Estética foi traduzida pelo Haroldo de Campos. Tem ainda o caso de Thomas Mann, filho de uma brasileira. E eu tive uma educação universitária alemã. Fui aluno de Koellreuter (Hans-Joachim Koellreuter), de toda aquela tradição do ensino de música, que foi uma continuação da Escola de Viena. É como se fôssemos netos degenerados da Escola de Viena, aquele mundo musical que Koellreuter fundou e dirigiu na Bahia.

Outra coisa: em São Paulo, viveu um alemão maravilhoso, pouco conhecido tanto no Brasil quanto na Alemanha: Anatol Rosenfeld. Nós temos as aulas dele todas: minha mulher copiava à mão e no dia seguinte ela datilografava. Temos um verdadeiro documento das aulas dadas por ele em São Paulo sobre o teatro europeu, sobre a tragédia grega, quando ele comparava a cultura européia com aquela florescência do tempo do teatro do Zé Celso, do teatro de Arena. E todas aquelas explosões brasileiras. Estamos sempre relendo esse material.

Você citou o Antônio Conselheiro. No Festival do Vale do Ruhr (Ruhrfestspiele), os brasileiros escolhidos são você e a encenacao de "Os Sertões", com direção do Zé Celso Martinez Correa. Poderia comentar essa escolha? Você, inclusive, fala de "Os Sertões" como o livro que te fez analfabeto...

Eu sou uma pessoa dali, dos sertões. Eu era criança e como não queria ler os livros da escola, aquelas coisas absurdas na nossa educação louca, vi Os Sertões em cima de uma pequena prateleirazinha lá em casa, na biblioteca de meu avô (lá tinha uma bilbioteca mesmo, por causa dos meus tios comunistas). Eu já tinha ouvido falar muito nesse livro, nas conversas depois do jantar, mas queria era ler gibi. Só que lá não tinha e quando não aguentava mais, peguei Os Sertões. De repente desconfiei, na segunda metade do livro, que ele estava falando de uma coisa que eu conhecia: eu, por exemplo, me encontrava no balcão da loja do meu pai, no meu sertão, com a Península Ibérica, civilizada pelos árabes na Idade Média. Esse encontro foi uma coisa linda na minha vida. Porque o povo do Nordeste segura com muita ansiedade suas tradições, já que se tornou analfabeto pela miséria, pobreza, com poucos recursos.

Costumo brincar que quando um povo sabe escrever, escreve o que precisa nos livros, põe na biblioteca e vai ver novelas na televisão, mas quando um povo não sabe escrever e ama a própria cultura, então só vive falando nisso. Viver no Nordeste é um exercício diário de inteligência, uma coisa maravilhosa. Quanto a Os Sertões e eu: costumo dizer que aquilo que no Tropicalismo vem de mim é o que vem de Os Sertões. Li isso até em uma coisa que o Martinez Corrêa escreveu, citando Oswald de Andrade, que o Brasil tem duas correntes literárias: uma é o pessimismo de Machado de Assis e a outra é o otimismo de Euclides da Cunha. E realmente o otimismo de Euclides da Cunha, naquele lugar tão pobre e miserável, naquela Germânia, naquela espécie de pântano invertido, que era a seca. E os espinhos que matavam os exércitos legionários, que iam pra lá tentar nos dominar.

E o que está aqui agora é um pouco disso, um pouco dessa resistência. Não sou uma criatura culta. Sou como o nordestino, tenho a maneira dele de ver a vida. Não tenho uma maneira universitária de ver a cultura. O nordestino tem uma curiosidade frente a tudo o que ele encontra: ele não tem especialização nenhuma, mas leva tudo em consideração. Tem uma história de que tem um tipo de cupim, no Nordeste, que ia caminhando pelo chão. À tarde, quando ele voltava "para casa", se tivesse uma taliscazinha pelo caminho, ao invés de fazer a volta, ele ficava batendo a cabeça na talisca. Esse silêncio abismal do ermo nordestino, as pessoas ficarem ouvindo aquele animalzinho batendo a cabeça naquela talisca. Isso é uma ilustração fantástica do que é o homem nordestino: quando ele encontra alguma coisa, fica batendo a cabeça. Isso é um símbolo de como o nordestino vive. E eu sou uma pessoa daí, da roça, que construiu com uma espécie de autodidatismo, um tipo de música, uma maneira de falar que é musical.

Essa sua "maneira" é extremamente apreciada fora do Brasil. Em um texto recente do “Le monde diplomatique”, por exemplo, o autor, quando fala sobre a história da música brasileira, diz que você foi a figura mais importante, o cerne do Tropicalismo. E que seu trabalho oscila entre a tradição e a abstração pós-moderna. Você poderia comentar essas reverências todas que a sua obra vem recebendo fora do Brasil?

Isso que está na minha música vem do Nordeste, que contém essas duas coisas ao mesmo tempo – a tradição e a abstração. O analfabetismo, aparentemente o limite, é justamente a nossa metafísica. Estudiosos costumam dizer que a música brasileira foi tardiamente romanizada, que ela tem a influência celta, árabe, dos troubadours (trovadores). O analfabetismo acaba sendo uma maneira de ultrapassar a “cultura normal”.

Veja bem: um cantador nordestino é obrigado a saber toda a história de Roldão, aquele herói do século 11, que significava valentia. Todo o caráter de cada um dos personagens, aquela saga imensa. Ele é obrigado a saber isso de cor. A França esqueceu disso. Só tem isso no museu, o registro do que houve no século 11. Mas no Brasil não. O cantador nordestino, para poder ser cantador profissional, trovador, tem que saber tudo isso. Tanto que agora começou uma coisa de fanceses irem para o Nordeste do Brasil, aprender o tipo de improviso que os trovadores praticam e que eles sabem que veio de Roldão, para levar de volta para a França. Veja que coisa curiosa.

É a sincronia, o analfabetismo do nordestino atua como aquilo que ao mesmo tempo limita, mas evita a presença da romanização e da ocidentalização e faz passar por essa barreira. O Nordeste brasileiro é um tipo de lugar onde tem um espermatozóide de uma cultura pré-românica muito forte. A canção brasileira talvez tenha se desenvolvido e chegado onde ela chegou por causa disso.

Quando você fala que sua linguagem não é a da cultura universitária, diz também que compõe para o cidadão comum ouvir. Isso pensando no ouvinte brasileiro. E o europeu, como você acredita que ele te ouve?

Me lembro de um dia em que conversava com Tárik de Souza e Gilberto Gil, depois de um show meu, no Brasil, o lançamento do segundo disco da Luaka Bop, em 93. Eu tinha feito sucesso no exterior em 90. Ficamos pensando assim: puxa, mas o que é que faz sucesso, um autor cuja música é especialmente concentrada na letra, que não traduz essa letra, como é que faz sucesso? No terceiro CD, apareceram aqueles rapazes, o Sean Lennon, High Llamas, Tortoise e mais uma porção de bandas jovens americanas se aproximando de mim. Eu falei: realmente, é como se eu fosse um avô remoto deles. Dizem que as gerações gostam de desrespeitar os pais e acabam indo atrás dos avós.

Essas manifestações de uma cultura original, na Europa, parecem já ter há muito se perdido. O cenário pop no últimos tempos acaba sendo renovado através de imigrantes ou de descendentes destes. Qual é a sua impressão sobre isso?

Tenho uma impressão que não pode ser exata, mas observei uma coisa na França: lá, agora, toca pouco francês, toca tudo dos países da África. Eu tinha dito uma vez no Brasil que o negro chegou às Ámericas para desintoxicar gerações que estavam já adoecidas com esse casamento de primos próximos, que são naturalmente os europeus. Eles chegaram para revigorar o sangue, a coisa religiosa, as artes. É justamente o ser "incivilizado" aquele que vai fazer o rompimento da barreira cultural. Na própria história da cultura européia, isso aconteceu nos anos 20 através de Meyerhold (o russo Vsevolod Meyerhold 1874-1940) e através do teatro de Brecht (Bertold Brecht 1898-1956). O rompimento, mesmo dentro da cultura européia, se deu através do desrespeito às velhas regras.

E seus próximos projetos?

Estou preocupadíssimo com meu novo disco. Vou sair do tipo de música que estava fazendo. Vou ficar sem pai, sem mãe, porque vou fazer uma música completametne diferente. Quando você abandona uma música, perde o país, perde tudo. Essa música que faço agora, a Europa vaticinou ao Brasil que ela é brasileira. Eu faço samba e no Brasil não sou chamado de sambista. Os estrangeiros, americanos e europeus, descobriram uma coisa que o Brasil não sabia. No próximo CD precisei fazer outra coisa, que já vinha maturando, uma coisa de necessidade. Não é uma violência que estou cometendo contra mim. Quero me dirigir a isso. Então vou ficar sem pai, sem mãe, sem proteção de nada, porque não sei nem se vai ser chamado de culto o trabalho, como até hoje é chamado o que faço. Vai sair no fim deste ano. Quando eu voltar aqui no próximo ano, já vou voltar com uma coisa completamente diferente!