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'Roppongi'

Simone de Mello11 de novembro de 2007

Em seu último livro, "Roppongi", o escritor austríaco Josef Winkler contrapõe o significado da morte e as práticas funerárias ocidentais e orientais, revelando que o Ocidente católico é mais "bárbaro" do que se pensa.

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Livro registra rituais funerários no Ganges, rio sagrado dos hinduístasFoto: AP

"Após eu já ter assistido a diversas cremações e ter saciado minha curiosidade necrófila – vocês se lembram que a torrente das minhas imagens de recordação começa com meu terceiro ano de vida, no instante em que a minha tia Tresl me levou ao quarto onde estava sendo velada minha avó morta de desgosto, a avó que havia perdido três filhos jovens na Segunda Guerra Mundial, ergueu-me sobre a parte inferior do caixão decorado com ramos de buxo e levantou a mortalha, mostrando o semblante de morte da minha avó materna –, o que me interessava não era ver e rever ininterruptamente como os mortos eram cremados à margem do rio sagrado [Ganges], mas sim, o que especialmente me atraía era participar e fazer parte – observando e registrando com caneta-tinteiro e caderno de anotações – da ligação entre vida e morte (...)."

Josef Winkler - österreichischer Schriftsteller
Josef WinklerFoto: dpa / picture-alliance

Assim descreve o narrador de Roppongi – Requiém para um Pai, o mais recente romance do escritor austríaco Josef Winkler, a obsessão que o leva a preencher 161 páginas com histórias de mortos e práticas de luto no Oriente e Ocidente.

Em mais um livro autobiográfico, o escritor narra a morte do pai numa fazenda da Caríntia, província austríaca, enquanto ele mesmo se encontrava em Roppongi, bairro de Tóquio, numa turnê de recitais literários pelo Oriente.

Viagem e drasticidade, especialidades austríacas

É conhecida a fascinação dos austríacos pelas viagens e pelo Oriente. Romancistas como Christoph Ransmayr e Raoul Schrott já transformaram isso numa espécie de prática literária. O interessante no breve romance de Winkler, no entanto, é a inversão do estranhamento.

Ao acompanhar a narração das lembranças de infância do escritor durante uma viagem ao Japão e à Índia, o leitor inevitavelmente sente as culturas orientais como um universo mais próximo e compreensível do que um vilarejo católico de 200 habitantes no interior da Áustria.

Evidentemente isso é um artifício da narração. As lembranças de mortes e práticas funerárias católicas vêm à tona do fundo da memória infantil, mais suscetível à percepção do grotesco, enquanto as descrições do fim do livro sobre o cotidiano de um crematório às margens do Ganges, em Varanasi, respiram a objetividade de um registro imediato em tempo real.

Mas a crueza ímpar com que Winkler descreve as relações humanas no ambiente viciado de um vilarejo católico austríaco revela o que a Europa ainda tem de bárbaro e costuma ser encoberto sob o slogan da "civilização". Neste ponto, a drasticidade de Winkler se aproxima, em seus melhores momentos, do radicalismo de um Thomas Bernhard.

Hiper-realismo próximo das imagens cristãs

Com certeza, a proximidade de morte e vida é bem maior no campo do que na cidade, sobretudo na zona rural de uma região onde práticas agrícolas e sociais seculares se mantiveram intactas até um passado muito recente. Longe dos hospitais e da indústria funerária, nascimento e morte são fatos mais reais do que simbólicos.

Por maior que seja o ímpeto de desmascarar a hipocrisia do catolicismo, as descrições hiper-reais de Winkler são impregnadas de uma drasticidade bem próxima das representações iconográficas cristãs.

Neste livro, assim como em outros do romancista caríntio, o grau de exposição visual do corpo e da psique como matérias frágeis e suscetíveis à degradação é comparável ao repertório de uma religião que propagou – dentro do espaço protegido da "civilização" – talvez as imagens necrófilas mais drásticas do Ocidente.

Buchcover Josef Winkler: Roppongi
Foto: Suhrkamp

O hiper-realismo de Josef Winkler também é resultado de uma abolição entre vida e ficção. Em Roppongi, o escritor menciona reiteradamente o fato de ter sido jurado de morte no vilarejo onde nasceu, por ter exposto a vida privada de seus moradores ao público leitor de todo o mundo.

"Uma coisa eu lhe digo, meu filho, quando chegar a minha hora, eu não gostaria que você viesse ao meu enterro", diz uma frase do pai do narrador/autor citada inúmeras vezes no romance. O medo imediato do pai era o filho ser linchado pela população local. Mas talvez não só isso.

Josef Winkler: Roppongi – Requiem für einen Vater (Roppongi – Réquiem para um Pai). Frankfurt: Suhrkamp, 2007; 161pp.