1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

"Yuan está longe de ser uma divisa internacional"

Fábio Corrêa
14 de abril de 2023

Presidente Lula causou trepidação ao questionar na China a universalidade do dólar. Em entrevista à DW, economista Lia Valls esclarece a origem dessa dominância e as perspectivas de uma nova ordem monetária.

https://p.dw.com/p/4Q7an
Presidentes Lula e Xi Jinping em praça aberta
Presidente Lula em Pequim, ao lado do homólogo Xi JinpingFoto: Ken Ishii/Kyodo News/AFP

Em discurso na posse de Dilma Rousseff no comando do Banco do Brics, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionou o papel do dólar como moeda universal e defendeu que os países do assim chamado Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) utilizem uma moeda própria entre si.

“Precisamos ter uma moeda que transforme os países em uma situação um pouco mais tranquila”, defendeu Lula, durante sua viagem à China, maior parceira comercial do Brasil.

O uso do dólar como divisa global remonta ao fim Segunda Guerra Mundial, da qual os Estados Unidos saíram como vencedores: sua moeda foi então adotada como base para as transações internacionais, substituindo o ouro.

Em entrevista à DW, Lia Valls, professora de Economia da UERJ, pesquisadora associada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre) e sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) afirma que, mesmo com o crescimento econômico da China, ainda há poucas chances de se mudar esse padrão.

"A China, por mais que seja uma potência, não tem a mesma credibilidade na questão monetária que os Estados Unidos têm e que demoraram para construir”, afirma, citando medidas do governo chinês que controlam a saída da divisa no país asiático.

Segundo Valls, os acenos do governo brasileiro à questão monetária buscam uma maior multipolaridade com o maior parceiro econômico brasileiro, mas, ao mesmo tempo, não representam resistência aos Estados Unidos: "Não imagino que o Lula e o governo brasileiro tenham intenção de acirrar esse tom.”

DW: Lula fez críticas nesta quinta-feira (13/04) ao dólar como moeda do comércio internacional. Por que isso é regra hoje?

Lia Valls: Para uma moeda ser aceita e cumprir o seu papel, ela precisa ser aceita internacionalmente como meio de troca, como unidade de conta e como reserva de valor. É o caso do dólar.

A moeda americana ganhou essa posição hegemônica já durante a Segunda Guerra, quando foi criado o Fundo Monetário Internacional (FMI) e um sistema cambial em que todas as moedas foram fixadas em relação ao dólar. Temos que lembrar que os Estados Unidos terminaram vitoriosos na Guerra, com a Europa depauperada. Isso fez com que se saísse do padrão-ouro, com o dólar se tornando a moeda central. Até então, a garantia era que toda a moeda americana era lastreada em ouro, mas isso acabou 1971.

Depois, ao longo do tempo, as principais commodities, como o petróleo, passaram a ser cotadas em dólar. Tudo isso dá muita força à moeda americana. O dólar ficou com esse papel, mesmo com outras moedas crescendo muito. É ele que entra em todos o continentes.

O yuan está longe de ser uma divisa internacional da forma que pensamos. Embora a China seja o maior exportador e o segundo maior importador, o país asiático ainda tem controles de capital, então a moeda chinesa não é totalmente conversível.

O que significa ser totalmente conversível?

Significa que não há receio de se trocar a moeda em qualquer país que se vá, porque o país emissor está sempre garantido acesso àquela divisa. Não é o caso da China, que coloca controles de saída de capital com a moeda. O yuan não é plenamente conversível, porque há controles mais fortes em relação à saída dele.

E que tipo de vantagens o uso do dólar como base da economia mundial dá aos Estados Unidos?

É uma vantagem enorme. As sanções financeiras estão aí para mostrar isso. Além disso, a política monetária escolhida pelos EUA influencia o mundo como um todo. Depois, por ser divisa internacional, há outra grande vantagem, porque os Estados Unidos podem ter um déficit grande na balança comercial, como eles têm, e não se preocuparem com isso.

No Brasil já tivemos mais uma crise cambial, quando se começa a ter déficit em conta corrente e não é possível cobrir, pois o país não emite dólar. A única forma de esses países atraírem dólares, é através de empréstimos ou de trocas comerciais. Isso dá uma força política muito grande na economia mundial para os EUA.

Existe a possibilidade de se mudar esse padrão, seja com o yuan ou outra moeda? É algo viável a médio prazo?

A ideia de termos uma moeda alternativa ao dólar existe desde a conferência que criou o FMI. Os europeus não queriam que o dólar fosse a moeda internacional por excelência, pois perdem poder com isso. O grande negociador europeu foi [economista britânico] John Maynard Keynes [1883-1946], que advogava a criação de uma moeda internacional única, mas não havia força pra isso.

Em 2008, na crise econômica mundial, quando houve a construção mais clara do Brics, foi discutido numa das cúpulas do bloco a importância de se ter uma moeda internacional. Todas essas são tentativas de se tirar a hegemonia do dólar. Mas é algo que acho pouco provável de acontecer num horizonte perceptível.

Porque hegemonia tem um lado bélico, e os americanos são a principal potência bélica; um lado político, aí temos mais controvérsias; e o econômico, onde há uma clara disputa na liderança tecnológica entre EUA e China, com a China ascendendo muito rapidamente.

Os chineses têm reservas enormes, mas muito em títulos do governo americano, então esses países querem diversificar mais as suas reservas internacionais, isso é uma preocupação, principalmente da China.

Recentemente, Brasil e China assinaram um acordo para viabilizar transações diretas entre yuan e real, sem o uso de dólar. Qual é o impacto isso pode ter?

A China está querendo aumentar o grau de internacionalização da sua moeda, por isso tem buscado esses acordos. O que não quer dizer que todo o comércio entre Brasil e China vai passar a ser feito em moeda local.

O governo tem um poder até certo ponto, mas não vai proibir o exportador brasileiro de querer receber às vezes em dólar. Porque quem vai gastar o dinheiro depois é o exportador, e ele tem que ter interesse. A China, por mais que seja uma potência, não tem a mesma credibilidade na questão monetária que os Estados Unidos têm e que demoraram para construir.

Nesse contexto de tentativa de maior equilíbrio mundial, qual é a importância de iniciativas como o Brics e o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB)?

O sistema multilateral criado após a Segunda Guerra está em crise. A Organização Mundial do Comércio (OMC) não conseguiu avançar muito nas suas negociações, dada a tensão grande que existe entre os EUA e a China.

Os chineses querem garantir o grau de autonomia deles, não têm interesse em criar mais tensão, pois já têm problemas internos – e querem crescer mais. Mas o estilo de crescimento chinês é considerado pouco leal pela Europa e os Estados Unidos, por ser baseado num Estado forte, com muitas empresas estatais e subsídios, por exemplo.

Nessa alternativa, tem-se tentado criar organismos multilaterais que atendam mais aos interesses desses países. e dar a eles maior grau de autonomia – instituições que não tenham sido criadas à luz dos interesses dos EUA e dos aliados, como ocorreu no pós-guerra. A China quer também circular num ambiente que não signifique estar sempre num embate com os EUA.

A fala de Lula pode ter um impacto negativo nas relações do Brasil com os Estados Unidos, tanto econômica quanto politicamente?

Isso vai depender do grau de se subir ou não esse tom. Que ele fale isso na China, é mais ou menos esperado. O Brasil nunca que se colocou como antiamericano, o Lula não é antiamericano, o Brasil tem parcerias estratégicas com os Estados Unidos.

Agora, os chineses realmente oferecem mais para a América Latina do que os americanos, que acabaram ficando preocupados com essa fala. A mesma coisa que a Europa, que quer avançar no acordo entre Mercosul e União Europeia, porque percebe que a China é um concorrente na região.

Mas não imagino que o Lula e o governo brasileiro tenham a intenção de acirrar esse tom para algo em termos antiamericanos, porque grande parte do estoque de capital estrangeiro ainda é norte-americano e europeu, e ainda estamos numa área de influência muito direta dos Estados Unidos.